Uma matéria do jornal “O Globo” de domingo passado (23.07.23) anuncia que “As temporadas 2023/24 de cruzeiros de artistas será quente”. Pagodeiros, sertanejos, sambistas, sem falar no incontornável rei Roberto Carlos, na “rainha dos baixinhos”, Xuxa, e no “parça” Neymar, todos se farão ao mar com fãs, amigos e o público em geral. Enfim, o mar transbordará de emoções.
Tudo começou com o pioneiro Roberto Carlos há dezoito anos. Vestido de marujo, o rei sempre reúne um cardume de fãs que não se cansa de se emocionar com suas canções. A indumentária e o marketing enfatizam ao público presente que ele de fato está num navio e que o navio, o que é mais espantoso, está em pleno mar, da mesma forma que, nas praias, as casas da classe média são decoradas de peixinhos, de polvos, de conchas… Entre afagos e coletes salva-vidas, cercados pela noite marinha, os casais requentam a moqueca do amor. “Emoções em alto-mar” se tornou um clássico. Roberto Carlos já deveria, no mínimo, ter ganho o posto de almirante.
Na temporada dos cruzeiros, o mar também vira sertão. O sertão dos sertanejos. O mar aguenta tudo. O melodramático das canções casa bem com a maresia e o imaginário dos naufrágios. A música das duplas desperta polvos adormecidos, que naturalmente lamentam não ter tentáculos gigantes para provocar, digamos, uma experiência imersiva. O mar virar sertão não tem mais nada de assustador, é um evento extremo como qualquer outro.
Xuxa, relembra a matéria, comemorou seus 60 anos com um grande show também em alto-mar. Levou vários outros artistas. O público a bordo deve ter ido ao delírio. Tudo no mar fica melhor. A Xuxa marítima ou marinha deve ter dado um banho de emoções. Havia também paquitos e paquitas para fazer sonhar os mais pacatos…
A temporada também promete “O maior baile do mundo em alto-mar”, com Alexandre Pires, que também reunirá muita gente parceira. Também não podia faltar “Um mar de amor” (um título que diz tudo, profundo como as Fossas Marianas), do Daniel, sem falar de uma segunda edição do “maior cabaré do mundo em alto-mar” com a dupla Bruno & Marrone. E nem pensem que Maiara e Maraísa ficarão para trás, a ver navios. Não, a dupla (de duas predestinadas, pois seus nomes contêm a palavra “mar”) já tem marcado para março de 2024 um cruzeiro especial.
Enfim, o mar não está para peixe, mas para tesouros nada perdidos, pelo contrário muito bem encontrados. Todas essas delícias marinhas misturam ingredientes mitológicos. Não falo de Netuno nem de nereidas. O tema é antigo, como (sem querer botar água no chope) o prova o Titanic. Nessa segura e lucrativa navegação de cabotagem, está presente o imaginário das águas. Os navios se tornam uma espécie de “locus amoenus”, aqueles que “só servem para o prazer, os não destinados a fins utilitários”, como dizem os estudiosos. Os “fins utilitários”, no caso, estão fora dessa “paisagem” idílica, estão, invisíveis, em outra esfera, longe do oceano. O potente imaginário amoroso do mar é uma pedra de toque que perpassa as fantasias do marketing e os sonhos de prazer: “emoções”, “amor”, “cabaré”, “baile”… Sem falar no lúdico, por mais ridículo que seja, como é o caso de Roberto Carlos vestido de marinheiro, o que nos lembra uma sábia observação de Roland Barthes: “Apregoar que os reis são capazes de prosaísmo é reconhecer que este estatuto não lhes é mais natural do que a angelitude ao comum dos mortais […]” (Cf. “Mitologias”).
Tais cruzeiros também evocam que podemos partir de forma segura. E que também podemos voltar a uma espécie de festivo útero, agora já desprendido ou desgarrado do mundo tedioso que ficou em terra. A propósito, Roland Barthes, ainda em “Mitologias”, nos lembra que “O gosto pelo navio é sempre a alegria do enclausuramento perfeito, do domínio do maior número possível de objetos”. O próprio navio, acrescentemos, já é por si uma ilha encantada. Não estamos longe do imaginário da infância, com a diferença que se paga um tesouro por um tesouro que se dissipa no ar (no mar) assim que se põe novamente os pés em terra firme. Mas, enfim, como canta o rei, “O importante é que emoções eu vivi”. Boa viagem!
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