Quando, em 2009, tivemos a honra de fazer o prefácio do livro de contos “O livro submerso”, de Marcos Creder, anotamos que o autor não estava “[…] se aventurando num livro. Não está[va] publicando ‘exercícios’ de ficção. É escritor com plena consciência de sua expressão literária”. E isso, fique claro, não era nenhum elogio, era uma simples constatação, uma impressão geral da obra.
Agora, o ilustre médico e psicanalista recifense volta a publicar um novo livro de ficção, que é tão bom quanto o primeiro, com um conjunto de novelas quase tendendo ao romance. É possível que o escritor esteja numa fase de testar novos campos, de expandir seu fôlego, de pensar ainda mais sobre a condição humana, não sem o gosto do lúdico que tanto aprecia e que também é daqueles autores a que faz referências em várias de suas narrativas, a exemplo de Borges, de Edgar Allan Poe, de Oscar Wilde e de Shakespeare, que é o mestre de todos.
O novo livro chama-se “À luz âmbar do sol poente”, título que rima semanticamente com o tema da velhice que perpassa as novelas. Se “sol poente” por si só lembra a decadência e a morte, para ficarmos no lugar-comum, “a luz âmbar”, que bem poderia ser também a da aurora, traz, na sua radiação polifônica, algo do próprio ardor da vida (como apontou Cervantes, “Até a morte, tudo é vida”). “Ardor” que talvez possamos decompor em “ar” e “dor”, sendo o “ar” justamente a Palavra, a narrativa da existência, sempre tão cara aos mais velhos (até porque têm, quase necessariamente, muitas histórias para contar e grande sede de que os escutem). Por sua vez, a “dor” dispensa maiores explicações, sendo não só uma companheira física, carnal, vinda e originada de várias partes do corpo, como uma companheira moral e psíquica a reunir arrependimentos, remorsos, mágoas, agravos e saudades. Não por acaso, um dos personagens de Creder reflete belamente que “A alegria é a irmã mais moça da felicidade, uma criança ainda”. Uma bela associação que esconde, em negativo, o quanto a maturidade, e sobretudo a velhice, nos traz de amarguras e tristezas.
A velhice, justamente por ser um tema forte, exige uma mão delicada. Seria fácil, mas medíocre, carregar nas tintas e num tom melodramático. Creder, por seus narradores, prefere a discrição, não aperta com força a tecla por receio de desafinar a melodia. Como todos os grandes temas, a velhice deve se furtar ao cinzento dos lugares-comuns; o âmbar do sol poente lhe traz certo mistério, exige uma hermenêutica muito própria. Ela põe à prova o passado, “a grande dor das coisas que passaram” como diz Camões em verso imortal; ela precisa acertar contas e, ao mesmo tempo, já sabe o quanto de repetição move a “máquina do mundo”. Daí que a personagem da primeira novela, Mona, uma quiromante, defronte-se, ela própria, com um destino especial: o dela, memória que a queima como um fogo interior. Também ela, entre a palavra e a dor, busca compreender o passado, consciente de que “[…] pessoas solitárias se parecem com fantasmas”…
Tematizar a velhice requer muito mais do que expor personagens velhos e solitários. O ficcionista sabe que trabalha num limiar, mas nem por isso deixa de denunciar a trágica condição da extrema velhice, quando, à semelhança da morte, esta vai igualando a todos: “Se eu fosse escrever um texto de trinta linhas sobre a senilidade [diz um dos narradores], a palavra ‘desrespeito’ se apresentaria já no primeiro parágrafo […]”. Dessa forma, nesse tom, várias reflexões aqui e ali pontuam as narrativas; são dos próprios velhos ou de personagens ainda jovens que os observam no desconforto da condição senil. Os papéis sociais são subvertidos, como se pode ler num trecho como este: “Um dos maiores delírios dos velhos é se pensar jovem e, como todo bom e disciplinado delirante, imaginar-se numa patética caricatura de juventude. Talvez a ingenuidade da infância seja a melhor forma de nos disfarçarmos de jovens. Sim, eu via em Tibério, o tão preparado e maduro advogado, um tolo”. Um trecho que relembra as palavras de La Rochefoucauld: “Os velhos malucos são mais malucos que os jovens”.
Esse Tibério, que logo acima citamos, é um dos mais bem construídos personagens de Marcos Creder. Prestem atenção nele. Reúne, a um só tempo, não só a tolice mencionada, como uma tragicidade e nobreza de um rei Lear suburbano. A velhice para ele, diz o narrador, era um “General Aníbal” a consumi-lo “[…] pelos flancos e pelas costas […] Derrotado, Tibério envelhecia com rancor”. Um rancor que é talvez diretamente proporcional aos sonhos frustrados de grandeza. Da personagem, o narrador parte para uma generalização que dispensa comentários: “A velhice dá um tom picaresco às pessoas que têm a nobreza de Tibério”.
Na novela algo alucinatória que fecha o livro, há um personagem que também é um velho e que igualmente sofre “à luz âmbar do sol poente”, que fala sem palavras e que se impõe não só pela antiguidade, mas por uma semelhança com os demais idosos, pois nele ainda circulam o ar das palavras e a dor da idade, sendo sua memória atravessada de majestade, magnetismo e decadência. Com mão de mestre, o ficcionista fala sobre esse velho para transfigurá-lo em símbolo. Trata-se do Hotel Central, por diversas razões tão icônico e tão caro aos recifenses. Em sua imponência arquitetônica e histórica, agora também tomada como cenário ficcional, esse velho personagem, caixa de ressonância da transitoriedade da existência, lembra a verticalidade que o escritor parece querer imprimir às revelações e derrotas de todas as velhices.
A análise , a partir do título, é mestria de quem sabe “ ver” que uma cor não é apenas uma cor – como o diz o grande O. Paz qdo , teorizando sobre a poesia, esclarece que, nessa seara, “a pedra é pedra e tb pluma”. Maravilha! Este é um grande convite à leitura! Vou à busca!