No último dia 21 de abril a Rádio MEC – ou Radio do Ministério de Educação e Cultura- completou 100 anos. Criada por Edgard Roquete Pinto e Henrique Morize, foi a primeira emissora radiofônica do Brasil – e desde aquele dia nunca saiu do ar. Na extensa caminhada que percorro ao longo de meio século, derramando suor pelas redações da vida, lembro com saudade e com prazer os dois anos em que trabalhei na Rádio MEC, no Rio de Janeiro, então dirigida pelo escritor e jornalista José Candido de Carvalho, autor de “O Coronel e o Lobisomem”, um clássico de nossa literatura.
Devo dizer que até então eu jamais havia entrado numa emissora de rádio, não tinha a menor ideia de como aquilo funcionava. E sabia que a audiência da Rádio MEC, com suas limitações, não passava de três por cento, restringia-se à cidade do Rio de Janeiro. Mas sabia que ia trabalhar com algumas “lendas” na história do rádio brasileiro: Giuseppe Ghiaroni, Floriano Faissal, Paulo Tapajós, Anita Taranto, Gilberto Milfont e outras grandes estrelas da Rádio Nacional, todos afastados da emissora depois do Golpe de 1964. Também estavam lá Cid Moreira e Sergio Chapelin, Clóvis Costa Paiva e Claudemir Brochado, o pernambucano Ademir Menezes, ex-craque do Sport, do Vasco e da Seleção Brasileira, que comentava futebol com péssima dicção e baixíssima audiência – mas mesclava a larga produção da Emissora.
O presidente da República, quando lá cheguei, era o general Ernesto Geisel, e na Rádio estava uma das “invenções” do Sistema, denominada “Projeto Minerva”. Missão: levar a cultura nacional para os mais distantes recantos do país – ao lado de um programa de alfabetização à distância, que reunia a maior cadeia radiofônica do país, num total de mais de cinco mil emissoras. Projetos que estavam sob a guarda de Mário Henrique Simonsen, que também era Ministro da Fazenda do país. Foi para trabalhar no Setor Cultural do Projeto Minerva, isto é, na produção de conteúdo que não estavam ligados à alfabetização à distância, como se propunha o Mobral , que cheguei na Radio MEC. Na função de “Coordenador-Adjunto de Comunicação”, para a qual fui contratado. Adjunto de quem? De Ghiaroni, o homem de criações lendárias, de novelas famosas, de jingles que encantaram gerações, de poemas como “A máquina de escrever”, por exemplo. No mesmo dia em que fui contratado, fui apresentado ao meu novo chefe, que eu não conhecia. Conversa curta e franca. Diz ele: – “Você vai ser meu coordenador-adjunto. Acontece que eu não gosto de trabalhar. Gosto de pensar e orientar. O trabalho pesado vai ficar com você. Produção de programas, gravações, ler, antes de gravar, crônicas e artigos de alguns medalhões que fazem parte do nosso cast, como Austregésilo de Ataíde, Herberto Sales, Raquel de Queiroz, Josué Montelo e outros mais, – tudo isso agora é com você. E tenha cuidado com essas crônicas, porque “medalhão” também escreve besteira. Boa sorte”.
Algumas surpresas quando entrei pela primeira vez na sede da emissora. Logo na entrada, havia um quadro de avisos. Entre esses “avisos”, estampada com destaque, uma Portaria do Ministro da Educação, Ney Braga, um general da reserva e ex-governador do Paraná, a quem a Rádio MEC era subordinada. Dizia-se na Portaria que “estava terminantemente proibida a divulgação de qualquer música, sob qualquer pretexto, do compositor Chico Buarque de Holanda, etc. etc.”. Portaria anterior já condenara à mesma “pena” o paraibano Geraldo Vandré, esse ainda mais odiado pela cúpula mais radical das Forças Armadas. Não fui surpreendido pelo fato de que a Rádio sofria censura; fui surpreendido por esta censura não se limitar a uma ou outra composição, mas à obra total do compositor, que não era tão crítico assim em relação ao regime vigente. Essa era a regra do jogo – era pegar ou largar. Trabalhando numa agência de publicidade que vinha atrasando o pagamento e caminhava para a falência, é evidente que me demiti e fiquei na Rádio. Até porque a censura não era “minha”, era “deles”. E fui em frente. Comemorava-se, naquele ano, o Centenário da Imigração Italiana para o Brasil, e de cara recebi a tarefa de escrever um texto radiofônico com 45 minutos de duração, falando desse evento: os pioneiros, a dificuldade de adaptação, os costumes, a música, a cultura italiana.
Escrevi, escolhi a trilha sonora, gravei com um dos narradores da casa, coloquei na “grade”. Quando o programa foi ao ar, José Candido de Carvalho quis saber quem tinha produzido. E pela mão de Ghiaroni fui levado ao seu Gabinete, onde ele falou de projetos futuros para a Rádio MEC. Um deles, principalmente, me encantou: contar a história dos 100 anos da Música Popular Brasileira, através de uma proposta do pesquisador Ricardo Cravo Albim. Não era um projeto barato, mas, na época, o “caixa” da emissora permitia alguns gastos mais volumosos – até porque vários dos artistas que seriam convidados a participar não abririam mão dos seus cachês. E a responsabilidade não era minha, era de Ghiaroni.
Deve ser dito que, quando apresentado por Ricardo Cravo Albin o projeto dos “100 Anos da MPB”, foi Ghiaroni quem leu a sinopse, avaliou a viabilidade, calculou custos e levou para José Cândido de Carvalho apenas chancelar. A partir daí, a tarefa era definir os detalhes e marcar a data das gravações.
Foi também Ghiaroni quem sugeriu a Ricardo Cravo Albin que arranjasse um Conjunto Musical para acompanhar as gravações – porque nos quadros da Radio isso era impossível. E sugeriu o nome de Altamiro Carrilho.
Acontece que o genial flautista estava “fora do mercado”, ninguém sabia do seu paradeiro, sabia-se apenas que continuava vivo, não tocava nem gravava fazia muito tempo. Depois de algumas buscas, junto a amigos dele e alguns conhecidos, -descobriu-se que Altamiro estava morando em Niterói, aposentara a flauta e tinha um pequeno comércio na feira semanal da antiga capital. Não sei como se chegou a ele – sei que, convidado, Altamiro aceitou – e em menos de 15 dias montou um conjunto com alguns nomes que já conhecia e que haviam trabalhado com ele noutras ocasiões: um violão tradicional; um violão de sete cordas; um pandeiro; um cavaquinho; ele mesmo tocando a flauta. Para compor o grupo, Ghiaroni recrutou o “coro” da Rádio MEC, formado por Gilberto Milfont e mais cinco jovens mulheres talentosas. As demais providências caberiam a Ricardo Cravo Albin. (Um parêntese: a Rádio MEC recolocou Altamiro Carrilho em evidência. Depois dessas gravações, ele foi convidado para o “Projeto Seis e Meia”, e percorreu o Brasil acompanhando grandes nomes da MPB, apresentando-se, inclusive no Recife, ao lado de Sônia Delfino).
Em pouco tempo, começamos as gravações de uma série de 30 programas. Foi Paulo Tapajós que abriu a série, cantando “cançonetas” compostas no final do século 19, por Patápio, Calado, Chiquinha Gonzaga e não sei mais de quem. E continuamos as gravações compreendendo todas as fases e toda a evolução da MPM: gravaram conosco, revivendo épocas, além de Paulo Tapajós, o grande intérprete do samba Paulo Marquez, Luiz Gonzaga, Rosinha de Valença (Maria Rosa Cannelas), Jonhy Alf, Edu da Gaita (Eduardo Nadruz) Elza Soares, Gal Costa, Lúcio Alves, Sônia Delfino e o que havia de melhor e mais representativo da MPB naqueles anos setenta. (Não lembro agora, mas acho que Gilberto Gil e Caetano Veloso estavam exilados; mas se estivessem presentes não gravariam: faziam parte da lista negra dos censores).
Finda a série de programas, uma das gravadoras de porte médio que existiam no Rio de então (Tapecar), transformou tudo aquilo em discos e fitas cassete e colocou esses produtos no mercado. Escrevi as capas dos discos. Produzimos outros programas relevantes: um deles com o astrônomo Ronaldo Mourão, Intitulado “Ora, direis, ouvir estrelas” … Outro, dedicado ao público infantil, com o Maestro Carlos Eduardo Prates, chamado “A Criança, o Maestro e a Música”. Esse último era produzido aos sábados, na “Casa Rui Barbosa”, com o maestro ensinando os primeiros rudimentos da música erudita a um público infanto-juvenil.
Era um ambiente alegre, aquele da Rádio MEC. Eu estava bem, satisfeito com o meu trabalho, rodeado de gente talentosa, mas problemas pessoais me forçaram a pedir desligamento da emissora. E não trabalhei mais no Rio de Janeiro. Quando me desliguei da Rádio MEC, estava com as malas prontas para o caminho da volta.
Ivanildo Sampaio é jornalista
Crônica não apenas saborosa de ler mas valiosa como testemunho histórico de uma época de riquezas culturais e baixezas políticas.