Coronel (autor desconhecido)

Coronel (autor desconhecido)

 

O coronel Epaminondas morreu. Sua morte provocou uma comoção, um choque e grande inquietação na região. Todos pareciam pensar que o poderoso latifundiário e líder político fosse imortal, continuaria sempre mandando na vida e no destino daquela parte do Sertão. Estava velho, mas ainda era o dono das terras e das pessoas. De repente, um vazio. O homem, que cristalizava a cultura e a estrutura de poder, desapareceu. E agora? A perplexidade se espalhou entre os políticos locais, obedientes à sua vontade, os religiosos, piedosos financiados pela generosidade do coronel, os empregados das fazendas e os moradores das cidades. 

Pouco antes de morrer, ofegante e muito pálido, o coronel chamou José Manuel, seu filho mais velho. Entregou dois envelopes. “Este menor, abra e leia logo que eu morrer. São recomendações para meu velório que exijo rigoroso cumprimento. O segundo você deve ler só depois do enterro porque são instruções para o que deve fazer deste império que eu vou deixar para a família”. O filho tentou desviar a conversa de morte e velório, “o senhor ainda vai viver muito tempo, meu pai e continuar no comando”, mas recolheu os bilhetes. 

Na manhã seguinte, o coronel morreu. Com uma dor de cabeça alucinante, José Manuel foi à cidade providenciar os serviços funerários. No caminho de volta, trazendo o caixão fúnebre, ele lembrou dos envelopes que tinha esquecido jogado na cabeceira da cama. Em casa, correu para o quarto e abriu o envelope menor. Texto curto e direto que o deixo estonteado. “Que loucura é essa, meu pai? – pensou. Não posso fazer isso. É contra toda tradição. E ainda será muito incômodo para os nossos parentes e amigos”.

Guardou o envelope no bolso e foi para a sala, já decidido a ignorar o pedido, afinal o velho estava morto e não ia mudar nada se desobedecesse a suas instruções malucas. Estava organizando a sala para o velório, quando viu sua mãe se arrastando pelo caminho, parecendo um fantasma, quase tão morta quanto o marido. Ele se aproximou, apoiou os braços da mãe até que a acomodou num sofá. E sentou-se ao seu lado. Diante dela, José Manuel achou que deveria mostrar o bilhete na expectativa que ela, conservadora e muito religiosa, concordasse em manter os ritos tradicionais. Mas, a sua lealdade ao coronel era maior que a devoção divina. 

– Não sei como vai fazer, meu filho. Mas nós temos que respeitar a última vontade do seu pai. 

Surpreso com esta reação, José Manuel retrocou, argumentando que seria um choque para a comunidade, além de difícil de fazer, considerando o corpo sem vida, que as pernas não suportariam o corpo morto. “Consulte meu neto, Alfredinho. Ele é muito engenhoso”, respondeu a viúva, insistindo para que ele atendesse às instruções do coronel. 

José Manuel não queria nem sabia como fazer para seguir as instruções do coronel. Mas entendia a soberba do pai, iria se sentir humilhado, inferiorizado, se as pessoas o olhassem de cima, vendo-o abaixo, deitado e impotente. Queira que seus empregados, seus amigos e, principalmente, os falsos amigos e inimigos, o vissem no mesmo nível, cara a cara, com toda sua pompa e poder. Sorriu, percebendo a empáfia do coronel, mesmo depois de morto, queria mostrar que ainda dominava. Quando encontrou com Alfredinho. José Manuel explicou a confusa sua situação, pedindo seu apoio. O neto do coronel quase gritou:

– Em pé? Ele quer ficar em pé na sala para o velório? Que velho maluco, mesmo depois de morto inventa novidades pra complicar nossa vida. Ignora essa bobagem, tio.

– Não posso, Alfredinho. Minha mãe não admite que o pai seja desobedecido. 

– O velho tá morto. Não vai saber como foi velado. Mete ele no caixão e pronto. 

– Porra, Alfredinho, eu posso até ignorar o velho, mas não vou desobedecer à minha mãe. Eu quero a tua ajuda como engenheiro, aliás foi ela que mandou te procurar dizendo que era um sujeito muito engenhoso. Acha uma solução pra colocar o coronel de pé na sala.

– Tá bom. É simples. Deita ele no caixão e instala a peça na vertical. Só precisa prender o velho atrás pra não cair pra frente. Em pleno velório, seria uma tragédia. 

– Não. Não é solução. Ele exige que seja colocado no caixão apenas na hora do enterro.

No início da tarde, várias pessoas e autoridades já se concentravam no terraço da casa grande esperando o velório. Foi servido um suco e café para ganhar tempo, enquanto o corpo do coronel era colocado de pé no final da sala. Com uma pequena e discreta estrutura de metal construída na oficina da fazenda, Alfredinho conseguiu segurar o defunto em pé vestido com roupas simples do poderoso fazendeiro, calça beje, camisa branca, parcialmente coberta por um gibão e botas pretas meio encardidas. O chapéu foi preso na mão. Quando estava tudo montado, José Manuel abriu os olhos do coronel e colou as duas partes da pálpebra para dar a impressão de que estava olhando para os visitantes que o iriam velar. 

Aberta a porta da sala para o velório, ouviu-se um grande tumulto provocado pelo susto diante da figura estranha e imponente do defunto vivo, com seu olhar dominante e autoritário. Era o mesmo coronel, dono das terras e das pessoas. Os visitantes foram se espalhando pela sala, aterrorizadas, evitando se aproximar do corpo. Pareciam paralisados, assustados, mas também fascinados com a cena teatral. Aos poucos, amigos e parentes foram se acostumando e chegando perto para sentir o olhar duro do coronel. Muito incomodados com a insólita e provocativa imagem, os políticos preferiram se afastar e saíram, às presas, da casa grande. 

O padre Vito, italiano gordo e vermelho, como se tivesse um ataque de apoplexia, gesticulava sem nexo e balbuciava repetidas rezas, temendo a blasfêmia dos olhos faiscantes do defunto, como se fora o demônio em pessoa. Pensou que não poderia celebrar uma missa para um cadáver de pé e procurou a viúva para manifestar os pêsames e implorar para que deitassem o coronel no caixão. 

– Padre Vito, esse foi o último pedido do meu marido. Tenho que respeitar, o senhor não acha? 

– Acho sim, senhora. Mas, já passou, todo mundo já o viu de pé. Agora, para eu celebrar uma missa de corpo presente, eu preciso que ele esteja deitado e com esses malditos olhos fechados, entende? Este é o ritual cristão, minha irmã. 

A viúva não respondeu e logo José Manuel se aproximou do padre e informou que o seu pai não queria que fosse celebrada missa nenhuma. Mostrou o bilhete, que o padre leu com o rosto contido e a testa franzida, indignado com a rebeldia do coronel. Lançou um olhar para o rosto pálido do defunto, sentiu um movimento dos lábios do coronel, como se ele ensaiasse um sorriso matreiro, deu meia-volta e, quase correndo e tropeçando nos móveis, fugiu da cena diabólica.  

No final da tarde, o corpo inerte do coronel foi retirado da estrutura montada pelo neto e colocado no caixão, logo levado para o cemitério da fazenda. Apenas os familiares acompanharam a caminhada que levaria o coronel Epaminondas até a cova. A figura do poderoso fazendeiro de pé na sala, com os olhos bem abertos e a fisionomia dura, foi a última imagem que o coronel Epaminondas deixou na região. 

Quando voltou para a casa grande, José Manuel abriu o segundo envelope que o pai tinha entregado antes do último suspiro. Foi para o terraço, respirou fundo e leu o texto. 

“Meu filho, você é o meu sucessor na família e nessas terras, o patrimônio que sobrou da minha longa e nem sempre amável e honesta existência. Não tenho nada a reclamar da vida. Mas, não queria que você vivesse o mesmo que eu vivi, ter que lidar com empregados incompetentes e, alguns até ladrões, eu sei que os explorei e, muitas vezes, os maltratei, talvez tenha sido mesmo necessário, mas, agora que estou morrendo, eu sinto um certo remorso. Não queria que você tivesse que conviver com esta difícil administração da fazenda. Por isso, recomendo que você venda as terras, pegue o dinheiro e volte para sua vida no Recife com sua mulher e suas filhas. Peço apenas que leve e proteja minha amada esposa. Sei que nem precisava, mas eu insisto, cuide dela com todo o nosso amor.  

Pior do que os nossos empregados, meu filho, são os políticos, estes nojentos que vivem me bajulando e extorquindo, todo tempo pedindo dinheiro pra qualquer coisa. E o safado do prefeito e uns vereadores de merda, analfabetos e oportunistas. Livre-se deles. E o padre, este hipócrita que está sempre rezando e professando virtudes, mas vive comendo as beatas, em nome de Deus. E eu, meu filho, ainda sustento este vigarista com doações porque a igreja alimenta o comodismo e a passividade do povo, que me é bastante útil. O padre vai procurar você pedindo que continue com as doações. Mande-o para o inferno. 

Eu não aguentava mais esta vida de mentira, rejeitava a minha própria insensibilidade com a pobreza do povo e a dura existência dos meus empregados.  Ainda bem que eu morri. Como não quero que você viva o que eu vivi, venda esta terra e vá embora. Eu já fui. Felizmente”. 

Sorrindo, José Manuel dobrou a carta e colocou sobre a mesa. Saboreou um gole do suco de graviola e, olhando as primeiras chuvas que anunciavam um inverno generoso no Sertão, ele pensava na figura imponente do seu pai. “No íntimo – pensou – o coronel tinha uma sensibilidade secreta, cuidadosamente escondida para assegurar o seu poder sobre as terras e os homens da região”.