“Escritoras israelenses de A a Z” – 319 páginas, R$86,00, editora AzuCo -, organizado pela professora Leniza Kautz Menda, é uma dessas obras cujo ineditismo lhe garante um lugar de referência na estante de leigos e bibliófilos. Vários pontos concorrem nesse sentido. Em primeiro lugar, temos uma panorâmica inédita dedicada estritamente às escritoras, num país onde assomam nomes icônicos como Amós Oz, David Grossman, Aharon Appelfeld e Etgar Keret. Assim, para quem achava até recentemente que Ayelet Gundar-Goshen brilhava como estrela solitária no firmamento feminino, vai se surpreender com mais 28 autoras de talento e originalidade, sobre cujas obras poderemos nos debruçar à medida que forem aparecendo no Brasil. Nessa toada, Leniza reuniu nomes consagrados em suporte aos seus próprios textos. É assim que o leitor terá inéditos de Marcia Dreizik, Luiz Paulo Faccioli, Moacir Amâncio e Vivian H. Schlesinger, entre outros, que, generosamente, acorreram ao mutirão da professora.
O segundo ponto é que, a despeito das dificuldades técnicas de se organizar um trabalho desses, especialmente quando se trata de uma editora iniciante, o leitor sairá revigorado e com vontade de mergulhar na policromia e na polifonia de um país que é, por si só, uma babel onde ressoam influências culturais de todas as origens. Já no prefácio, Rafael Bán Jacobsen diz: “Aqui, encontra-se um panorama da literatura feita por mulheres nesse país tão pequeno em extensão, mas grandioso em passado histórico, hibridização cultural, efervescência religiosa, diversidade humana e significância política”.
O terceiro ponto a ser ressaltado diz respeito aos mundos que cada uma das autoras traz na sua literatura. É difícil encontrar tamanha diversidade em outro país. Israel tem apenas 75 anos. Mas a cada década, a composição étnica mudou com a incorporação de imigrantes da Europa setentrional, do Norte da África, do Mediterrâneo e do próprio Oriente-Médio, para não falarmos da grande leva de russos que chegou no bojo do esfacelamento da URSS, e de americanos de todas as procedências que fizeram Aliá, inclusive brasileiros. Ora, cada imigrante trazia o país de origem nos costumes e, previsivelmente, encarava o porto de acolhida segundo esse prisma. Pegue-se o caso de Dorit Rabinyan que desvela o mundo do judaísmo persa. Apenas páginas mais adiante, Rina Frank nos traz os ecos da Romênia, da vizinhança árabe de bairros pobres e da compulsão arraigada da mãe de trazer papel higiênico de todo banheiro público por onde passava, ademais da relutância em aprender o hebraico, o que dificultava a adaptação da família ao novo mundo.
Como pano de fundo, assoma a formação da nova cidadania em Israel, que se deu em paralelo ao fortalecimento do hebraico como língua franca, conforme as palavras da editora Karen Szwarc. “No século XX, Israel foi o berço do judaísmo de músculos, segundo Tony Judt. O sabra dos anos pioneiros já não lembrava o avô talmudista, que lia à luz de uma vela em Lublin. Os nascidos nos kibutzim sonhavam em pilotar caças. Ben-Yehuda vivificou o hebraico. Ao desembarcar em Yafo, viu que o homem com quem trocou dinheiro estava a gosto na língua ancestral. Que se entendiam! Isso animou-o. Proibiu o filho de falar russo! Sensual e melodioso, o Ivrit floresceu. As crianças o viralizaram, os adultos o propagaram e até os mais velhos aderiram. Na música e na poesia, a Nação conheceu a unidade.”
Voluntária de kibutz nos anos 1970, os ingredientes de beleza e sensualidade de Israel jamais deixaram Leniza Kautz Menda. A literatura faz um incomparável contraponto a essa trajetória. Entre as guerras de 1967 e de 1973, dita do Yom Kipur, retratada no filme Golda, o país ainda vivia sob a égide de uma liderança nascida fora dali e respirava o espírito dos chalutzim, os pioneiros, aqueles que tinham forjado a identidade nacional à base de força, determinação e de vagos sonhos socialistas. Nesse contexto, Yael Neeman diz que um kibutz é, antes de tudo, uma criação política, e não um vilarejo pastoril. Quem diria que eles viviam, nos anos 1970, o começo do fim? Os anos 80 trouxeram a proeminência da direita política, a Era Begin, e a chegada ao poder dos judeus sefaradim e mizrahim (mediterrâneos e orientais), fato pontuado pelo assssinato de Yitzhak Rabin, ainda na década de 1990, quando o país não completara 50 anos.
Nos últimos 20 anos, a despeito dos progressos sociais e tecnológicos da startup nation, Israel tem vivido as contradições da Era Bibi, que tem se caracterizado por vigor econômico, pragmatismo diplomático e submissão a uma ala político-religiosa mais radical que faz proselitismo em cima das contradições da sociedade. Ora, ninguém melhor do que as mulheres para captar essa coreografia onde “Ocidente e Oriente dançam à beira da falésia”, no dizer da editora. Eis portanto um livro para ter e entesourar.
Fernando Dourado Filho é autor do romance O Halo Âmbar
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