O marco temporal para a demarcação das terras indígenas virou uma queda de braço pesada entre as instituições da República. O governo defendeu a posição contrária à bancada ruralista, que queria limitar as desapropriações às terras ocupadas por etnias até a data da constituinte de 1988. O STF adotou a mesma postura do governo, contra o marco temporal, mas admitiu indenizações para os produtores que compraram terras indígenas “de boa fé”, obrigando o governo a pagar por benfeitorias e pela terra nua. Para completar o imbróglio o Senado votou por 42 a 23 uma lei que contraria a decisão do Supremo em relação ao marco temporal e acrescentou outras barbaridades. Simultaneamente a Câmara entrou em obstrução, ostensivamente para obrigar o executivo a entregar os cargos da Caixa Econômica Federal e da Funasa para políticos do Centrão indicados por Artur Lira. Não se trata apenas da indicação dos presidentes destas instituições, mas aquilo que se chama de “porteira fechada”, ou seja, todos os cargos. A ofensiva da Câmara e do Senado não é uma coincidência, mas uma ação concatenada com pesada influência da bancada ruralista, visando colocar o governo na defensiva.
O que está em jogo é um conflito que vem de longe e tem a ver com o papel de cada uma das instituições da República e das relações entre elas. O Centrão, uma composição de deputados e senadores com variadas agendas conservadoras ou mesmo reacionárias somada a uma disputa por parcelas cada vez maiores do orçamento, tornou-se a força dominante no Congresso, em especial na Câmara de Deputados. A fragilidade do executivo no governo Bolsonaro significou um empoderamento crescente desta maioria reacionária/fisiológica e que se fortaleceu com o aumento desta bancada nas últimas eleições.
Lula tem um voto seguro no Congresso que consegue (e no limite) barrar emendas constitucionais da oposição. Digo no limite porque o voto de eleitos por partidos ditos de centro esquerda, como o PSB e o PDT, não tem se mostrado firme no seu apoio ao executivo. A maioria que votou a lei do marco temporal no senado incluiu vários elementos destes partidos, mostrando que a bancada do agronegócio tem tentáculos na própria base parlamentar do governo. Por outro lado, todas as concessões feitas pelo executivo para atrair os partidos do Centrão para se somarem à base do governo tem se mostrado insuficientes. Apesar de comporem o governo, todos estes partidos, com exceção do MDB, votaram majoritariamente (e até integralmente) com os interesses ruralistas e contra o governo.
O conflito se amplia com a intenção dos ruralistas de votar uma PEC permitindo que o Congresso altere as decisões do Supremo Tribunal Federal. Tudo isso ocorre apesar de liberações de emendas e mais emendas favorecendo a “compra” de votos no varejo. Está cada vez mais claro que o jogo de poder de caráter fisiológico passa por decisões de Lira, que tem mostrado capacidade de controlar este componente do Congresso para aprovar o que lhe interessa ou para pressionar o Executivo por mais concessões em cargos públicos.
Há quem aponte para um vício de origem na formação da base do governo, sem um programa concertado previamente entre os partidos. A meu ver o buraco é bem mais embaixo, por se tratar de um conjunto partidário onde não há construção de programas que oriente as campanhas eleitorais e permita um voto consciente dos eleitores. Pior ainda, nem sequer os partidos ditos ideológicos, como o PT e o PCdoB, formularam programas de governo para submetê-lo aos eleitores. A campanha foi pautada por um conjunto de consignas bastante raso, com Lula vendendo uma “volta ao passado”, uma volta às bondades de seus governos (silêncio sobre os governos Dilma) bastante idealizadas e, sobretudo, uma campanha centrada na negação da ameaça bolsonarista. Foi o bastante para eleger Lula, mas não foi suficiente para fazer uma bancada forte no Congresso.
Como explicar que Lula tenha alcançado mais do dobro dos votos obtidos pelos partidos que o apoiaram? Este descolamento entre o voto majoritário e o voto proporcional não é um fenômeno recente, mas nestas eleições ele foi muito mais significativo. Será isto a consequência do uso de recursos públicos para projetos locais (as emendas parlamentares) influenciando o eleitorado? Ou é isto combinado com a geleia geral da nossa política dificultando a identificação de programas partidários mais colados com os interesses das grandes massas? Ou será que o voto reacionário, centrado nos temas de “costumes” encontrou um eco profundo no nível de consciência do eleitorado?
É importante também constatar que o voto ruralista é muito mais forte do que a base social diretamente vinculada ao agro. Uma explicação parcial pode ser encontrada na distorção, herdada dos tempos da ditadura e não erradicada na Constituinte, atribuindo um peso totalmente desproporcional de votos para estados predominantemente rurais e com baixo peso em número de eleitores, no Norte e no Centro Oeste. Mas isto não explica tudo. Deveríamos pesquisar o peso da forte articulação do agronegócio com outros setores da economia (industrial e financeiro) e o uso dos seus muitos recursos para favorecer simpatizantes mesmo em bases eleitorais urbanas.
O fato evidente é que as bancadas ruralista, evangélica e da “segurança”, apelidadas de “BBB ou boi, bíblia e bala” tem um peso desproporcional no Congresso, com ou sem o elemento político do bolsonarismo ultrarreacionário. Digo com ou sem este molho ideológico porque ele não é essencial para a consolidação deste bloco, muito embora ainda tenha peso no eleitorado.
E ficamos assim no pior dos mundos. O regime não é parlamentarista, mas o Congresso interfere pesadamente na capacidade de gestão do executivo. Se estivéssemos no parlamentarismo, o executivo seria uma extensão do Congresso e a responsabilidade pelo governo seria mais claramente de deputados e senadores. Não haveria esta contradição entre o voto majoritário e o voto proporcional. Mas o parlamentarismo exige a vigência de outro tipo de partidos, mais programáticos e ideológicos, que se apresentem ao eleitorado como opções de governo nacional e não como um somatório de candidatos com interesses paroquiais.
A tentativa do Centrão de dominar o STF com uma PEC permitindo que o congresso possa rever decisões do supremo vai dar em nada pois é óbvio que o mesmo supremo vai considerar esta PEC inconstitucional. Os próceres do Centrão sabem disso, mas mantém a ameaça só para fustigar o STF.
Mais perigoso, no momento, é o desenlace da votação do marco temporal no Senado. Os senadores da base querem que Lula vete a integralidade da lei enquanto outros, no governo e no PT preferem um veto parcial. Esta posição é baseada na ideia de que esta lei já está morta como inconstitucional, devido à decisão recente do STF contra o marco. Apelar para o supremo seria mera formalidade. Mas o veto parcial é indicativo da posição do governo em relação ao marco e aceitar a posição da bancada ruralista, mesmo que apenas para fazer uma aparente concessão, enfraquece a causa dos indígenas. Isto é tão óbvio que fica a dúvida de qual é a intenção real do governo.
A meu ver o governo está entre a cruz e a espada com o problema colocado pelo STF ao admitir as indenizações para quem comprou terras indígenas “de boa fé”. Como não se aplicam detectores de mentiras aos ocupantes de terras indígenas de “boa fé”, o critério vai ser subjetivo e a decisão vai ficar na mão dos juízes de primeira instância, sujeita a revisões até chegar no supremo. Podem esperar que o número de demarcações vai ficar muito diminuído. Por outro lado, o governo não vai querer pagar fortunas para grileiros (ou não) seja com qual fé, no caso de confirmação dos direitos dos ruralistas e vai preferir não ampliar as demarcações para não pesar no orçamento. O quadro já é complicado no presente por haver um bocado de congressistas com propriedades que já incorporaram terras indígenas demarcadas. Tantos homens “de boa fé » vão querer ser ressarcidos que mesmo este teto de gastos ampliado vigente não vai ser suficiente.
Ou seja, os três poderes da República estão em conflito neste caso das terras indígenas e isto tem impacto na questão ambiental, já que está mais do que demonstrado que são os indígenas os melhores defensores da floresta em pé.
Enquanto isso, o público em geral passa ao largo deste debate e apenas os indígenas e seus apoiadores e os ambientalistas estão se mobilizando. Uma posição mais clara do governo federal seria importante para ampliar a mobilização popular, mas não há sinais de que ela vá ocorrer.
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