Já ninguém pode deixar de reconhecer que o nosso mundo vive uma situação de grandes riscos, que comprometem o futuro da humanidade. E não falo das guerras brutais, como as da Rússia-Ucrânia ou Israel-Palestina, que, por mais destrutivas e cruéis que sejam, não se eternizam. Refiro-me aos males, hoje permanentes, da degradação ambiental e da desigualdade entre nações e entre criaturas humanas.
Essa tomada de consciência ganhou dimensão com o famoso relatório da ministra norueguesa Gro Brundtland, “Our Common Future”, e as conclusões do chamado Clube de Roma, logo exploradas por Celso Furtado no livro “O Mito do Desenvolvimento Econômico”. Por aí, ficamos todos sabendo ser impossível reproduzir os padrões de consumo dos países industrializados – EUA à frente – para o resto do mundo, sob pena de rápido esgotamento dos recursos naturais do planeta e elevação dos níveis de poluição ambiental a níveis incompatíveis com a vida humana. Havia e há que se pensar, portanto, em novo padrão de desenvolvimento, com ênfase na sobriedade de vida, rejeitando-se o consumo conspícuo, a cultura do descartável, o desperdício, as fontes de energia fóssil e poluidora, e priorizando-se a superação das desigualdades de renda, ou, mais precisamente, o acesso de todos aos bens sociais da nutrição, educação, saúde e segurança. E mal sabemos por onde começar.
O livre jogo das forças econômicas não nos levará a isso. Tomás Pickety e outros têm demonstrado que a concentração de renda e as consequentes desigualdades só tendem a aumentar, como resultado do que Marx chamou “as fúrias do interesse privado”. O mercado, como já rotulou José Guilherme Merquior, ainda que insubstituível, é imperfeito. E a alternativa do exclusivo controle estatal dos meios de produção revelou-se, no mínimo, ineficiente. Os países que a adotaram, URSS à frente, falharam, e agora restabelecem, em diferentes graus, a livre iniciativa. É a lição da realidade, ou, como ouvi de Henry Kissinger em conferência no Recife, simplesmente, um “empirical fact of life”. Resta-nos a fórmula mista do Estado regulador e interventor em setores estratégicos. Mas precisamos de muito, muito mais que isso. Precisamos de que a consciência ecológica e igualitária, que já vem conquistando tantas mentes, chegue às lideranças políticas mundiais, para uma profunda mudança de mentalidade, de programas e de ações. Utopia? Talvez, mas qual a alternativa?
Dois pensadores da minha geração, a quem presto homenagem, têm propostas para essa luta ciclópica: Clóvis Cavalcanti, economista ecológico, e Cristovam Buarque, engenheiro “educacionista”, ambos de renome nacional, e até internacional. Seus trabalhos foram alvo, em diferentes fases de suas vidas, de minhas críticas e glosas, sempre com respeito. Resumo aqui suas reflexões e recomendações, com uma ressalva final.
Clóvis, após travar conhecimento com o economista romeno Georgescu-Roegen e sua revolucionária abordagem da atividade econômica à luz da entropia, deixou de lado sua formação matemática em Yale (EUA) e converteu-se num ecologista radical, até mesmo em sua opção de vida. Para ele, a expressão “desenvolvimento sustentável” é tautológica, na medida em que, para que haja verdadeiro desenvolvimento, é indispensável que ele se sustente, isto é, que não contribua para o esgotamento dos recursos naturais da terra, nem a polua com rejeitos não recicláveis. Rechaça o consumismo, as falsas ilusões de conforto e “necessidades” mercadológicas criadas pela moderna civilização, ergue bem alta a bandeira da preservação da natureza, repudiando tudo o que possa contribuir para o aquecimento do planeta e a destruição da camada de ozônio terrestre. E ele está certo em toda esta sua campanha, quase quixotesca.
Cristovam por sua vez, tem-se concentrado em pregar a educação de base, como responsabilidade do Governo Federal, estendida a todos os brasileiros, sejam eles filhos de operários ou de capitalistas, de subempregados ou de profissionais liberais e servidores públicos, como única medida efetiva para promover a igualdade entre os indivíduos. Igualdade essa de oportunidade de ascensão social, mesmo vista como tiro de partida, e não como fita de chegada, segundo a fórmula de um inspirado comentarista econômico. Assumindo, obviamente, que, numa situação de miséria, será inócuo o discurso de proteção da natureza, e vã a diretriz de inibição de ações predatórias. A miséria, em si, já é grande poluidora. E os “remédios” até agora concebidos contra ela – as “bolsas famílias” de toda ordem – são paliativos ineficientes na luta mais profunda contra as desigualdades. Cristovam também está certo.
Mas é o momento de perguntar: onde caberia a minha ressalva, se louvo enfaticamente meus dois amigos pensadores? E eu esclareço: na omissão de uma exigência fundamental para a perseguição de suas metas de uma economia estável, constante (“steady economy”), e de uma sociedade igualitária. E tal exigência é simplesmente a estabilidade da população humana. Parece axiomático que não se pode postular um crescimento econômico zero sem igual condição para o aumento populacional, já que a única alternativa seria desapropriar os ricos para favorecer os pobres, internacionalmente, opção que podemos considerar impraticável. Temos que encarar, agora sem eufemismos, a realidade que se impõe, e postular, em escala doméstica ou universal, o controle da natalidade.
O fato é que o tema constituiu tabu, por muitos anos, pela objeção da Igreja Católica, ao argumentar, numa bela frase vazia, que, ao invés de prevenir nascimentos, deveríamos oferecer a todos a oportunidade de desfrutar do “banquete da vida”. Ao que se contrapunha o economista Mário Henrique Simonsen, ressalvando que tal afirmação revelava apenas a incapacidade de raciocinar com funções de duas variáveis. A resistência dos religiosos foi ao ponto de os órgãos governamentais terem que deixar de falar em “controle da natalidade” para adotar a fórmula mais palatável de “planejamento familiar”.
É fato também que as taxas de crescimento populacional, com o avanço da modernidade, tendem a decrescer, por múltiplas razões que dispensam demonstração aqui. Mas o problema continua, sobretudo nos países mais pobres, sem conhecimento ou meios de prevenir a gravidez humana, contribuindo fortemente para a miséria e seus dolorosos efeitos, entre eles a migração desesperada para o mundo “desenvolvido”, que tantas mortes de inocentes tem provocado, na travessia do Mediterrâneo ou no recurso às artimanhas dos “coyotes” para “furar” as muralhas americanas.
Parece ilógico, para não dizer irracional, que as criaturas humanas, cujas vitórias, através da ciência, sobre os fatores da morte – redução da mortalidade infantil, aumento da longevidade, contenção ou extinção das pandemias pela vacinação – não tenham discernimento para controlar, correspondentemente, os fatores da vida, gerando um desequilíbrio que nos pode ser fatal. É a advertência que deduzimos das análises do biólogo americano Stephen Jay Gould (ao lado do inglês Richard Dawkins, um dos cientistas da minha devoção). Segundo ele, assim como nosso planeta já viveu vários episódios de destruição em massa de espécies, por fatores diversos – o fim dos dinossauros, por provável choque de um asteroide, foi apenas um deles – podemos estar vivendo agora mais um, pela proliferação descontrolada e avassaladora de uma única espécie: a humana. E se não o percebemos facilmente, é porque tais episódios de “mass destruction” não se processam em tempo histórico, mas em tempo geológico, ou cósmico. O que não nos exime de pensar no futuro dos nossos descendentes.
Sendo assim, sem meias palavras, a estabilidade da população é pré-condição imperativa para a constituição de uma economia estável, em harmonia com o meio ambiente, e de uma sociedade igualitária, sem miséria. Fiquei muito feliz ao tomar conhecimento de que o recém-falecido ecólogo Herman Daly, professor emérito da Universidade de Maryland (EUA) e amigo, de longos anos, de Clóvis Cavalcanti, produziu um ensaio em que aborda, de maneira brilhante, este problema. O título é: “Ecological Economics and the Steady State: What, Why and How”, e consta de um livro que os alunos, filhos e amigos de Clóvis mandaram editar em sua homenagem, com numerosos pronunciamentos, por ocasião dos seus oitenta anos. Herman Daly é extremamente didático e correto em seu ensaio, fugindo a um certo estilo arrogante e “apocalíptico” que às vezes observamos nos ecologistas, ao ponto de sermos levados a rotulá-los de “eco-chatos”.
No ensaio, após dissecar o quadro inquietador que nosso mundo apresenta, sob vários aspectos, Daly, modestamente, propõe dez diretrizes de ação política para confrontá-lo. É um número arbitrário, ele admite, algumas propostas podem ser retiradas, outras incluídas, mas o conjunto nos força a sermos específicos e “focados”. E entre elas está a de número nove, que me permito traduzir do inglês: “Estabilizar a população. Trabalhar no sentido de um equilíbrio, em que nascimentos, mais imigrantes, sejam iguais a mortes, mais emigrantes. O acesso à contracepção deve ser universal, e leis de imigração democraticamente aprovadas devem ser respeitadas e reforçadas. A ajuda externa é mais eficaz transferindo-se riqueza do que realocando grande número de pessoas”.
Está dado o meu recado, amigos, com as bênçãos de Herman Daly. E vamos em frente, fazendo o que estiver ao nosso alcance, sem catastrofismo, com fé na humanidade e na ciência, que algum dia há de encontrar o caminho para esconjurar os sombrios riscos do futuro e promover a nossa redenção.
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