“Presepe”, como qualquer um dos contos de “Tutaméia”, de João Guimarães Rosa, traz evidentemente a marca do gênio do seu criador e de sua revolução linguística (ou “linguageira”, como diria Antonio Houaiss). Sim, como em qualquer outro texto do autor, nele também se observa a presença de ousadias sintáticas, de neologismos adredemente criados, de arrojadas metáforas, de impensáveis arranjos frasais, de alusões e elipses, de paradoxos, de um ritmo inconfundível tocado por frases curtas e incisivas. Tudo isso embalado pela dúvida, por cenas ambíguas e um ambiente rural claramente apontado pelo narrador.
À semelhança de outros contos de “Tutaméia”, “Presepe” é um texto curto, conciso, permeado de elipses, de silêncios, do que não está dito e aspira a ser palavra e talvez, da mesma forma, do que é palavra e aspira a ser uma encantada mudez. Ocorre que, para citar o próprio Rosa, “No silêncio nunca há silêncio”. O sentido compactado é, na verdade, uma miríade de sentidos. Cumpre a cada leitor desabrochá-los na medida de sua leitura.
Com “Presepe”, Guimarães Rosa nos chama a um outro Natal. Um Natal, para empregar suas próprias palavras sobre sua obra em geral, de “meditação e aventura”. No caso, trabalhando no limiar entre a poesia e a loucura, a meditação implícita nos aponta para a solidão dos idosos e dos vulneráveis. Solidão a seu modo “tradicional” quando chega o mês de dezembro e a maioria das pessoas se entrega aos festejos e aos lugares-comuns do Natal e da virada do ano. Mas “Presepe”, fugindo aos lugares-comuns, exalta os solitários e os vulneráveis em plena noite natalina, os que não vão às festas ou às igrejas, os que não têm encontros e grupos. Rosa cria uma comunhão de solitários, um novo presépio, que, à sua maneira, se comunica com um cosmos estremecido pelo mistério religioso da grande data.
O enredo é simples, mas grávido de cuidados descritivos e narrativos. Numa fazenda, todos da casa-grande foram à vila para a missa do galo e os festejos natalinos. Todos não, quase todos, “sobraram” Tio Bola, muito velho (80 anos) e agora magro; o Anjão, um “terreireiro” e “imbecil” (leia-se: “um doido manso”), e a “cardíaca cozinheira Nhota”. Sobre Tio Bola, o narrador logo diz que sofria importunação de crianças e adultos da família (“[…] casa vazia, os parentes figuravam ainda mais hostis e próximos. A gente precisa também da importunação dos outros”). Ocorre que o velho parente, por sua vez, era igualmente “afobado e azafamoso”). Será ele que vai promover a “aventura” do curioso trio: “Quis ver visões”. Seu espírito não se desconectava da data maior da cristandade. Irrequieto, logo manda o Anjão trazer um boi ao curral, o qual junta-se a um burro, já quase formando a cena da manjedoura: “Sem excogitamento, o burrinho dera a Tio Bola o remate da ideia […] como quando os bichos falavam e os homens se calavam”.
Aqui cabe um parêntese para lembrar o quanto os bichos são personagens relevantes na obra rosiana. Diga-se que os animais não são apenas uma figuração para dar realidade ao cenário rural da ficção, como ocorre em muitos autores, pelo contrário têm um status próprio e ressignificado. E assim foi desde “Sagarana”, seu primeiro livro de contos. Ao criar sua peculiar ficção, Rosa se volta para os animais como “com-viventes”, como forças da natureza a dividirem fraternalmente o palco da vida com a humanidade. Para relembrarmos alguns exemplos, citemos o Burrinho Pedrês, personagem do conto homônimo; a vaquinha Vitória, do conto “Sequência”, e os bois de “Conversa dos bois”. Rosa, como se pode ler em “Ave, palavra!”, também criou, quando diplomata na Europa, uma série de pequenos poemas inspirados em pinturas célebres sobre o Natal; versos que, como no conto que aqui analisamos, exaltam o burro e o boi, ambos animais consagrados pela cena cristã e fundante da manjedoura. Aliás o narrador de “Presepe” vai nos lembrar que os bois, ao se deitarem, não só se “ajoelham” como antes riscam “com a pata uma cruz no chão”.
Voltando à narrativa, vemos Tio Bola, como um menino treloso, esperar que a cozinheira e o Anjão sumam ou adormeçam para pôr em prática a sua “ideia”. O narrador acentua a libertária solidão do idoso: “Quem vinha rebater-lhe o ato, fazer-lhe irrisão? De anos, só isto, hoje somente, tinha ele resolvido e em seu poder: a Noite, o curralete, cheiro de estercos, céu aberto […] Caduco de maluco não estava”. Finalmente, uma nova manjedoura aos poucos se desenha e nos provoca: “Deitava-se no cocho? Não como o Menino, na pura nueza […] Teve para si que podia — não era indino — até o vir da aurora. Que o achassem sem tino perfeito, com algum desarranjo do juízo!” Enfim, dorme “de pés postos”, e “A noite era o dia ainda não gastado”. O Anjão e a Nhota também ficaram por ali até que “[…] a última estrelinha se pingou para dentro”. Com o amanhecer do dia, a vida volta ao normal. Tio Bola, satisfeito, repetia: “Amém, Jesus!”.
Num gesto criativo, à revelia do destino de ficar à margem, que lhe foi reservado, Tio Bola cria, na fronteira da insanidade com o lúdico e o poético, um lugar central de que se vê ainda digno e merecedor. A identificação com o próprio Jesus melhora sua autoestima e a aceitação de seu estado senil: “Amém”, assim seja. Sua velhice já não o deixa importar-se com uma visão convencional das coisas, pois na noite escura e silenciosa “Fazia futuro” (o contrário do que se poderia esperar), era a “Vez de espertar-se, viver esta vida aos átimos…”, o que parece dizer, no idioma usual da velhice, “cada dia é um dia”, “cada momento, um momento”, e isso, ao contrário do que parece a um olhar exterior, nada tem de ruim, como nos induz a pensar o narrador, é apenas uma outra forma de se conectar à existência.
Com efeito, o idoso simbolicamente se embebe da graça do nascimento: de sua posição cotidianamente marginal assume uma centralidade; no simulado presépio vivo se reúnem, para dizer como Machado de Assis, as “duas pontas da vida”. Tio Bola, cujo nome, motivadamente, traz círculos imaginários que lembram o movimento da própria vida, torna-se, como registra o narrador, “sarabambo”, ou seja, sarado e flexível. Numa imagem em negativo que vem a calhar, Hannah Arendt, em sua obra “A condição humana”, nos diz que “[…] a mortalidade é mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico”. Por sua vez e ao contrário, a natalidade, o Natal, nos parece dizer Guimarães Rosa, é justamente acompanhar, compreender e viver esse universo movente e cíclico.
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