Quase três semana após o final da COP27, que aconteceu no Egito, entre os dias 6 e 18 de novembro de 2022, ocorreu uma nova conferência internacional no Canadá, onde um documento divulgado pelo PNUD e pelo Instituto Internacional para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (IIED) esteve entre os temas centrais. Tal estudo, elaborado por Anna Ducros e Paul Steele, trazia uma revisão sobre abordagens e abrangências dos chamados biocréditos, uma forma de compensação pela conservação de biodiversidade ainda em estado embrionário em nível mundial, com algumas experiências interessante mas sem um padrão internacional, que em algumas versões possui algumas semelhanças com os já conhecidos créditos de carbono. Antes desta reunião em Montreal, em agosto do mesmo ano, a Nature Finance (organização vinculada à Mava Foundation, da Suíça) já havia organizado uma “Força-Tarefa sobre Mercados da Natureza”, da qual o líder indígena brasileiro Almir Narayamoga Suruí tomou parte. Este debate sobre biocréditos ganhou um considerável “corpo” ao longo deste ano, e está sendo debatido em várias mesas organizadas pela Nature Finance, um dos principais espaços de discussão sobre o tema na COP28, que vai até o próximo dia 10.

Quando se fala em incentivos para a preservação ambiental pensa-se logo em recompensas para quem mitiga emissões de Gases de Efeito Estufa, em Aquecimento Global, enfim, estímulos para frear um processo acelerado pela ação antrópica que afeta todo o globo, que está promovendo cada vez mais perceptíveis alterações climáticas, e por isso quem ainda possui reservas florestais recebe tanto as pressões para estancar desmatamento quanto as piores consequências destas transformações. Muitas vezes, este excessivo enfoque atmosférico parece algo abstrato demais, as atenções estão espalhadas pela atmosfera, tornando o debate muito pouco palpável fora dos meios acadêmicos. A conservação parece ter motivações etéreas, os critérios internacionais parecem pouco se preocupar com a biodiversidade em si, e o temor do desmatamento não tira os olhos das chuvas que diminuem enquanto o fim das matas ciliares também assoreia rios e córregos, secando-os. Neste sentido, estruturar créditos pela conservação em si torna problema e solução coisas muito mais sensíveis a olho nu.

O evento no Canadá, conhecido como Conferência da Biodiversidade (15ª edição), reuniu líderes mundiais em torno de estratégias para cumprir-se o   Marco Pós-2020 da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU. Tal agenda ganhou força após ter-se como consenso que biodiversidade e mudanças climáticas são temas inseparáveis, de modo que a floresta em pé resgatou protagonismo no debate sobre sustentabilidade: floresta é pé, com pessoas dentro. Em outras palavras, junto com a biodiversidade, há sociedades humanas que interagem dentro delas e subsistem pelo uso e renovação de seus recursos (ou, serviços ambientais).

No já mencionado estudo “Biocredits to finance nature and people: emerging lessons”, de Ducros e Steele, os autores destacam a prioridade para pagamento de créditos para populações indígenas e comunidades locais, tendo por alvo principal a Floresta Amazônica. Criticam o princípio da compensação, que pressupões que alguém que degenere a biodiversidade de um lugar financie onde se preserva, como é o caso dos créditos de carbono. Esta abordagem em que se otimiza o uso sustentável de comunidades (e seu conhecimento tácito) pressupõe a necessidade do desenvolvimento de modelos de governança de recursos de uso comum por parte das próprias populações envolvidas, em seus processos decisórios e no pagamento direto. Os dois economistas do IIED classificam os tipos de biocréditos em desenvolvimento em três tipos: preservação de biodiversidade em reservas existentes mas em risco, regeneração em locais desmatados mas recuperáveis e preservação contínua de áreas intactas. Ao longo deste ano, um dos principais espaços desta discussão foi o Painel Consultivo Internacional de Créditos de Biodiversidade, organizado pela França e Reino Unido, do qual Almir Suruí fez parte.

Na COP28, que está acontecendo em Dubai, o líder brasileiro participou de uma série de eventos sobre o tema, entre eles o ““Enhancing conservation and resilience through biocredits: Collaborative market design through South-South learning”, organizado pela própria Nature Finance and FSD Africa, no último dia 5. Nela o enfoque foi precisamente a questão da governança indígena e local das unidades elegíveis para biocréditos, tema fundamental para garantir também a sustentabilidade social deste instrumento de conservação ambiental. Dela participaram representantes das Nações Unidas, de governos africanos e sul-americanos, pesquisadores, de comunidades indígenas, como a também brasileira Laura Yawanawá.

Retomando seus mais de 30 anos de luta pela garantia dos direitos indígenas a seus territórios, Suruí, biólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, pontuou sua experiência ao liderar o Projeto de Carbono Florestal Suruí, iniciado em 2005 e que ganhou formato definitivo em 2009, ano que recebeu o Prêmio Maia Lin, durante a COP15, primeiro projeto sobre recebimento por serviços ambientais criado e coordenado por indígenas. Neste sentido, reforça a importância em se permitir que os povos originários aprendam a desenvolver o design dos processos de governança e gerenciá-los, o que garantiria a real independência e garantia de propriedade intelectual, além do real recebimento dos recursos, algo que frequentemente não acontece.

Tanto a sincronia entre a questão das mudanças climáticas e a preservação da biodiversidade, que tem grande potencial de levar as pessoas que não estão em meio à floresta a perceberem de modo concreto o que e por que estão preservando, quanto a viabilização de uma governança independente por parte de quem possui um cotidiano capaz de preservar a mata em volta de onde vive, são bases fundamentais para, inclusive, projetos de Desenvolvimento Verde ou mesmo neindustrialização (retomada da capacidade produtiva em consonância com os indispensáveis serviços ecossistêmicos. Tanto o trabalho apresentado ano passado na América do Norte quanto o resultado das discussões em torno dos biocréditos  – e o envolvimento social neste processo – precisam urgentemente ter seu balanço local, aqui no Brasil, pois há iniciativas a respeito aqui, que podem ser ampliadas e aprimoradas, e temos referências não apenas acadêmicas, mas lideranças reconhecidas que possuem protagonismo internacional no assinto; precisam ter sua experiência mais ouvida por aqui também