Polarização

Polarização

A polarização política está “calcificada” no Brasil1. É o que nos dizem. A metáfora induz, inevitavelmente, a muitas reflexões. Numa fratura de osso, por qualquer razão, a calcificação é benéfica para sua restauração. Entretanto, para além dos ensinamentos médicos, a metáfora utilizada quer sintetizar o problema atual da nossa democracia: seu “engessamento”, ou seja, seu enrijecimento a partir da contraposição de dois polos. Mais do que isso, a expansão dessa nova situação para diversas dimensões da vida; uma “calcificação” que não regenera o organismo, ao contrário, o debilita. Pode bem ser verdade que a metáfora tenha lugar na realidade. Mas, talvez seja importante entendermos as razões que nos levaram a isso e até que ponto pode se tratar de uma condenação.

Em primeiro lugar, concordo com o diagnóstico de que a polarização política que vivemos não é artificial. Ela é real. Em perspectiva, ela é catastrófica para o futuro do país porque os dois polos parecem não ter nenhuma perspectiva em ultrapassá-la. Agregaria também que ela não pode ser vista como um problema conjuntural ou mais especificamente eleitoral e, por isso, talvez não seja mesmo possível ultrapassá-la levando em conta as relações de força presentes. Assim, os riscos à democracia, ao que tudo indica, permanecerão latentes.

A polarização política não foi estabelecida por Jair Bolsonaro ou pelo bolsonarismo, a partir da eleição de 2018. Foi o Partido dos Trabalhadores (PT) quem instituiu a polarização – o “nós contra eles” – e a manteve porque sempre avaliou como positiva em razão dos ganhos eleitorais. Foi assim desde que definiu o PSDB como seu antagonista eleitoral. Naquela oportunidade, eram dois atores da redemocratização colocados em confrontação, um quadro diferente da polarização atual. O PT foi hábil em se constituir como novo polo ao transfigurar a contraposição anteriormente existente entre democracia e ditadura. Conquistada a democracia, foi o PT quem criou e reproduziu a polarização como definidor do embate político, visando estabelecer uma estratégia majoritária de largo curso. E isso dominou a política do país depois dos governos de Fernando Henrique Cardoso, os únicos que conseguiram suplantar essa dicotomia por meio de um projeto econômico exitoso. Com FHC nasce efetivamente o “presidencialismo de coalisão” como desdobramento, entre outras coisas, do sucesso alcançado na esfera econômica. Se a ditadura foi superada por meio da política de “frente democrática”, com FHC a política passa a ser uma espécie de antecâmara do projeto econômico de estabilização, crescimento e integração à globalização com as reformas privatizadoras. 

Com a debacle do PSDB e seu espaço político de oposição ao petismo capitaneado por Bolsonaro, a polarização ganharia outro sentido e apanharia os atores democráticos completamente desorientados. A ultradireita bolsonarista antepôs um discurso antagonístico radical ao processo de democratização e à sua consolidação política e simbólica, a Constituição de 1988, algo que antes não existia. Com o bolsonarismo no poder, toda a trajetória da redemocratização passa a estar em questão. Tratou-se, portanto, da introdução de um elemento “refundacional” na conjuntura política. A ultradireita se fez um ator disruptivo, mas ficou a meio caminho. E isso se verificou durante o governo Bolsonaro até sua derrota eleitoral em 2022 e a tentativa de golpe fracassada de 8 de janeiro de 2023, logo depois da posse de Lula.

Por muitos motivos. o PT não conseguiu capitanear plenamente a defesa da democracia diante do ataque frontal promovido pelo bolsonarismo. Ele não era e nunca foi um partido que se portou politicamente como defensor da Constituição de 1988, nascida do processo de transição do autoritarismo para a democracia. Em segundo lugar, porque estava envolvido diretamente, com outros aliados, nos processos de corrupção que abalaram os governos de Lula e Dilma (“Mensalão” e “Petrolão”). Isso facilitou o travestimento de Bolsonaro como paladino na luta contra a corrupção. Por fim, o PT construiu o falso entendimento de que o impeachment de Dilma, em 2016, teria sido um golpe de Estado, agredindo as instituições da democracia. Tudo isso, e mais a prisão de Lula, jogou positivamente para o fortalecimento da extrema-direita e a desorientação das forças democráticas.

Por “fortuna” (em sentido maquiaveliano), a vitória de Lula em 2022 representou uma reação exitosa à fracassada “refundação” bolsonarista – no fundo, uma falácia envolta em marketing e fake news. Por uma margem muito pequena de votos, Lula venceu a eleição devido à articulação de uma “frente democrática eleitoral” que nasceu por iniciativa da sociedade civil e não do PT, nem de Lula. Foi uma espécie de último suspiro da “frente democrática” que havia derrotado a ditadura, mobilizada agora para defende-la da ameaça bolsonarista, mas apoiando um personagem que sempre recusou essa estratégia. A reação institucional à tentativa de golpe em 8 de janeiro coroa, de certa maneira, esse movimento de defesa da democracia de 1988. 

Com a posse de Lula e depois do “susto” do 08 de janeiro, novamente o mundo político se rearranjou. Contudo, seu governo não é efetivamente de “frente democrática”, tampouco de “união nacional” e, ao contrário do discurso de campanha, não atua rigorosamente para pacificar o país. Deslocada qualquer possibilidade de uma verdadeira articulação governamental que envolvesse os atores de centro-esquerda democrática como novo núcleo de poder – o caso Geraldo Alkmin ou Simone Tebet são simplesmente resultado de operações eleitorais –, o que se sobrepôs foi um governo identificado sobretudo com a figura de Lula, imerso nos escombros do “presidencialismo de coalisão” e sem aliados leais, inteiramente submetido aos ditames e às inevitáveis – além de imponderáveis – negociações com os partidos do chamado Centrão, que dominam o Congresso.

Com Lula 3 não conseguimos estabelecer nada que indique a superação real da polarização, nos termos em que ela se estabeleceu, não porque o ideal seja a adoção de um comportamento mais condizente com a civilidade democrática, que frontalmente o bolsonarismo rejeita e o petismo instrumentaliza. O problema é de natureza política e deve se tratado com uma visão que não pode apenas derivar da empiria, mesmo que documentada por meio de pesquisas quali/quantitativas de comportamentos políticos. É preciso refletir sobre as transformações societárias que passaram a informar as culturas políticas dos principais atores em questão bem como os limites histórico-estruturais desses atores. Molecularmente, ultrapassou-se no Brasil a possibilidade de representação da política a partir do critério de classes. A sociedade do empreendimento individual expandiu-se, em todos os planos, de cima a baixo, colocando a democracia frente ao dilema: “decifra-me ou te devoro”.

No curso da transição, os atores que poderiam orientar e conduzir uma inversão real da nossa “revolução passiva”2 – processo em curso desde a luta contra a ditadura e depois com a redemocratização – se dividiram inapelavelmente. Como resultado, não conseguiram compreender o que estava mudando sob seus pés. Enquanto isso, uma sociedade profundamente transformada, apresentando sérias dificuldades em se reorganizar politicamente, parece dar claras indicações de que busca uma ressignificação da política. Trata-se de uma demanda justa e poderá ser produtiva caso não seja capturada pelo identitarismo, que tem provocado resultados políticos bastante problemáticos. Mas também é justa outra pergunta: haverá abertura e possibilidade para um novo projeto, um novo ciclo, que seja democrático enquanto valores e horizontes, mas que incida sobre na dimensão econômica, a partir das novas configurações do mundo? A sensação é que ou a democracia se conecta a essa mudança epocal ou ficará reduzida a um lugar subalterno e permanecerá sob ameaça.

A “calcificação da polarização” é efetivamente um epifenômeno do cruzamento de alguns fracassos no percurso da nossa construção democrática. Visto como uma radiografia, é ameaçadora. Mas não deixa de ser uma sinalização de que a revitalização da política democrática não pode prescindir de uma visão histórico-processual da sua trajetória, dos seus alcances, dos seus limites e, inevitavelmente, dos seus fracassos.

 

1 Longe de ser uma resenha, esse artigo tem por motivação a publicação de Nunes, Felipe e Traumann, Thomas, Biografia do abismo – como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil, Harper Collins, 2023.

2 Sobre a temática da “revolução passiva” e suas possíveis utilizações na história política brasileira, ver Aggio, A., “O paradoxal e iluminante conceito de revolução passiva” in Ainda respira – a democracia sobre ameaça, Appris, 2023, pp. 107-115; Werneck Vianna, L. “Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira” in A revolução passiva – iberismo e americanismo no Brasil, Revan, 1997, pp. 12-27.