Racism - Foto de Thomas de LUZE na Unsplash

Racism – Foto de Thomas de LUZE na Unsplash

“A censura, seja qual for, parece-me uma monstruosidade […] um crime de lesa-alma”                                                                                    Flaubert

 

O moralismo que assola o Brasil tem, neste exato momento, uma coloração e um ânimo claramente políticos. Aqui e ali, não por acaso, aparecem “cidadãos do bem” (os equivalentes alemães dos “cidadãos preocupados”). Os “do bem” são também muito “preocupados” com o “rumo das coisas”, com os “bons costumes”. Por “bons costumes”, entenda-se sobretudo “sexo”, gênero e proibição do aborto. Por ocioso, nem vou convidar Freud a passar por aqui. Os “do bem” são jardineiros severos a enxergar por toda parte a exuberância das ervas daninhas.

Dentre as ervas daninhas, os moralistas têm uma predileção por livros. Veja-se, agora, o momentoso caso do romance “O avesso da pele”, de Jefferson Tenório. Confesso que não havia lido o livro. Confesso que agora o li. E, para a confissão ser ampla, boa e moralmente purificadora, confesso que não aprecio o tipo de literatura de militância ou ativismo, da qual Tenório chega muito perto. Mas tiro o chapéu para ambos, livro e autor, uma vez que “O avesso da pele” é um bom romance. Lê-se com fluência e, salvo uma ou outra gordurinha, escrito com boa técnica e aguda sensibilidade.

O que os censores, sempre pensando “no bem”, parecem não ter gostado é dos temas abordados, e bem abordados, pelo romance, a saber: a vida precária e sofrida dos professores, o ambiente de periferia que espelha a condição de grande parte da população e que costuma ser invisibilizado, o racismo que vive perpetuamente no ar das relações humanas e sociais, o autoritarismo que perpassa as relações de classe e, por último, mas não menos importante, a sexualidade de jovens e adultos. Enfim, o autor reuniu um repertório antológico para perturbar os “cidadãos do bem”, todos estes, de resto, sempre atentos às nossas “indefesas” crianças e aos “valores da família”.

Com o sexo, vêm os palavrões, e isso é preocupante num país em que nossos ouvidos estão limpos dessas impurezas! Mas os censores “do bem” são “imbrocháveis” e nunca estiveram numa escola de verdade, onde, para desgosto deles, as crianças de 10 anos dizem mais palavrões que os rapazes e moças do Ensino Médio. Recentemente (sou obrigado a lembrar, maldita memória!) a própria presidência da República estava infestada de palavrões, mas “os do bem” ficaram bem calados, todos naturalmente tolerantes e  sem tomar as “medidas cabíveis”.

Tenório cutucou a onça com vara curta. Mas a literatura é para isso mesmo: ela nos estende à vista o mapa das controvérsias e as dores mais invisíveis. Não precisa ser “correta” ou “moral”. O seu natural poder subversivo sempre acende o alerta dos reacionários. Não por acaso, neste momento, nas prisões de Minas Gerais, só está permitida a leitura da Bíblia e de obras de autoajuda, o que apenas seria risível se não fosse profunda e tristemente político (Confira em nexojornal.com.br). Nada de literatura nos cárceres, pois, como se sabe, masmorras devem abrigar autores, e não livros.

Com “O avesso da pele”, o jovem estudante, sedento e curioso de compreender, vai abrir uma janela para ver o que certas paredes escondem e descobrir a vida como ela é. Além do mais, o livro é tributário do que, em crítica e teoria literárias, chama-se “romance de formação”, gênero que acompanha o desenvolvimento psicológico e o amadurecimento de um protagonista. Provavelmente por isso é que também foi escolhido para constar no Programa Nacional do Livro Didático e ser lido por estudantes do Ensino Médio.

Concluindo, trago aqui o que disse o governador de Goiás, Ronaldo Caiado. Indagado pelo UOL, ele revelou que não havia tido “coragem” de ler o romance de Tenório (Cf. “O Globo”, 13/03/24). Quero crer que a um líder de escol não pega bem ficar intimidado diante de um romance, sobretudo se esse romance tanto mimetiza a própria realidade do seu país. Por outro lado, não quero crer que “O avesso da pele” cause tanto medo ou precise de uma coragem especial. Não fica bem um líder político não querer ver a realidade. Nem falo aqui da sensibilidade poética de Tenório, cuja transversal presença é um dos encantos do livro. Coragem, governador! A literatura é para os fortes!