Haverá tempo para construir algum acordo para um candidato de oposição em substituição a Maria Corina Machado? Segundo fontes venezuelanas e do Departamento de Estado americano os chamados “Acordos de Barbados” não tiveram como condição a candidatura de Maria Corina Machado ou qualquer candidato específico, a condição da suspensão das sanções foi a realização de eleições democráticas.
O Conselho Nacional Eleitoral (CNE)da Venezuela marcou as eleições presidenciais para 28 de julho. Escolheu esse dia, do aniversário de Hugo Chavez, o líder da “revolução bolivariana” e mentor de Nicolas Maduro. O CNE anunciou o cronograma dia 5 de março e o prazo para registrar candidaturas é de menos de três semanas, vai até 25 de março. Oficialmente, segundo o CNE, a campanha vai de 4 a 25 de julho. Maduro ainda não se inscreveu, mas seu governo tomou medidas preparatórias recentes que formam um quadro caótico de avanços e recuos, de promessas feitas e logo desfeitas. A lista é variada.
Em outubro do ano passado, primárias organizadas pelos maiores partidos de oposição reunidos na “Plataforma Unitária da Venezuela” por uma candidatura única, deram vitória incontestável a Maria Corina Machado, uma líder popular que tem sido classificada como de centro direita e pró-mercado. Mas Machado está banida de participar de eleições por 15 anos, por acusações de conspiração e ocultação de patrimônio sequer investigadas, muito menos comprovadas.
Em 27 de janeiro, quando Corina Machado já percorria o país em campanha, com muito povo na praça, a Corte Suprema, composta de apontados por Maduro, ratificou a cassação dos seus direitos políticos. Segundo Jorge Rodriguez, o Presidente da Assembleia Nacional também controlada por Maduro, Machado foi banida em defesa da democracia, “pois queremos eleições que sejam competitivas para todos”. Obviamente essa ordem de “dar oportunidade a todos” serve ao objetivo de manter dividida a oposição, ao impedir uma candidatura unitária de opositores. A Plataforma nunca proibiu que outras candidaturas se apresentassem. O CNE, ao qual os partidos de oposição haviam pedido supervisionar a votação nas primárias, negou-se, e agora trata de deslegitimar as primárias.
Ainda há quem considere possível salvar as eleições se Corina Machado indicar um substituto. E assim o governo Maduro está tratando de se precaver contra tal possibilidade: poucos dias depois de o CNE marcar eleições e convidar observadores internacionais, o Procurador-Geral da Venezuela, Tarek William Saab confirmou a prisão de um líder da campanha de Maria Corina Machado em Barinas, por suposta conspiração contra o regime de Maduro e agressão a militares mulheres. A candidata havia denunciado o sequestro de Emil Brandt Ulloa, esse seu chefe de campanha em Barinas, e outros três chefes de campanha nos estados de Vargas, Yracuy e Trujillo. Todos acusados de conspiração contra Maduro. Segundo órgãos de defesa dos direitos humanos há pelo menos 288 presos políticos na Venezuela.
O “duplifalar” é organizado. Dois dias depois de anunciar a data da eleição, o CNE convidou ONU e Carter Center, União Europeia e Estados Unidos a enviar observadores para as eleições. Também convidou CELAC, BRICS, CARICOM, União Africana, União Interamericana de Organismos Eleitorais, mas o Presidente do CNE, Elvis Amoroso, frisou que as missões devem ser técnicas, não podem ter envolvimento político. Além dessa pretensão de determinar a composição das missões de observação, o tempo é curto para acompanhar os estágios do processo eleitoral. Cito o professor Benigno Alarcón, da Universidade Católica Andrés Bello: “no dia mesmo da eleição há muito pouco que se possa ver”. Recursos do governo na campanha, desigualdade de acesso à mídia, desqualificação de candidatos, críticos presos ou expulsos, não se percebem só com presença no dia da eleição.
E assim, já preparando as eleições, o governo Maduro, em 15 de fevereiro, fechou o escritório da Comissão de Direitos Humanos na ONU em Caracas. Deu 72 horas para que os funcionários da ONU deixassem o país. O Ministro das Relações Exteriores Yván Gil Pinto, que já foi Ministro da Agricultura, e é desde 2019 “Ministro del Poder Popular para Relaciones Exteriores de Venezuela”, anunciou a “suspensão…para uma revisão holística dos termos da cooperação técnica”, que estaria desempenhando um “papel inadequado” por “apoiar impunidade para pessoas envolvidas em tentativas de golpe e assassinato do Presidente”.
O escritório da ONU estava na Venezuela desde 2019 apontando abusos contra direitos humanos. “Conspiração para derrubar o Presidente”, ou algo nessa linha, tem sido a acusação de sempre contra críticos e opositores. Maduro nunca deixou de aproveitar ao máximo, em sua máquina de propaganda, o que foi a fracassada invasão apelidada internacionalmente de “operação Baía dos Porquinhos”, em maio de 2020, e alegadamente do conhecimento de Juan Guaidó. (Ver a análise dessa invasão em “Será?” (05/06/2020), “Venezuela: dois presidentes e uma invasão rocambolesca”). Da mesma maneira como sempre atribuiu o desastre econômico da Venezuela às sanções americanas, e não às medidas econômicas do próprio governo venezuelano.
Curiosamente, um dia antes da expulsão dos funcionários de direitos humanos da ONU, acusados até de terem “atitude colonialista”, a TV estatal em Caracas atacou outro funcionário da ONU, também da Comissão de Direitos Humanos, Michael Fakhri, Relator Especial da ONU para o direito à alimentação, que concluíu missão recente à Venezuela e afirmou que o programa alimentar do governo venezuelano não enfrenta as causas da fome e está sujeito a influências políticas.
Os ataques à ONU e a expulsão de seus funcionários vieram na esteira da prisão da advogada e analista militar Rocío San Miguel. Com ares de retaliação ao comunicado da ONU de 13 de fevereiro: “A Missão Internacional independente de determinação de fatos sobre a República Bolivariana da Venezuela expressou sua profunda preocupação pela situação de uma defensora de direitos humanos detida pelas autoridades na sexta feira [09/02/2024] e instou o governo a pôr fim à onda de repressão contra opositores que está se intensificando em todo o país.” (www.ohchr.org/es/press-releases/2024/02/venezuela-fact-finding-mission-expresses-profound-concern-over-detention)
Rocío San Miguel foi presa no aeroporto de Maiquetia (Caracas) quando aguardava um voo para Miami. Familiares detidos com ela foram soltos depois de alguns dias, com ordem de se apresentar à Corte toda semana. Cinco dias após a prisão de Rocío San Miguel seu advogado ainda não tinha conseguido encontrá-la. O Procurador-Geral Saab teria dito que ela estava na prisão El Helicoide, em Caracas, onde estão instalados os serviços de segurança e que com Maduro se tornou centro de tortura e prisioneiros políticos.
Mais preocupante ainda é a possibilidade de o terror contra opositores de Maduro vir a ultrapassar as fronteiras da Venezuela e chegar a países da região que abrigam exilados venezuelanos. Mês passado foi sequestrado e depois encontrado morto em Santiago um ex-tenente da Venezuela, Ronald Ojeda, que vivia exilado no Chile desde 2017. O nome de Ojeda estava numa lista do governo venezuelano de janeiro deste ano, de 33 militares acusados de traição e de planejar atividades criminosas e terroristas contra Maduro. Autoridades chilenas investigam o caso, mas por ora parece que Ojeda foi assassinado por uma facção da organização internacional de tráfico de migrantes “Tren de Aragua”.
Até que ponto a ameaça dos Estados Unidos de restabelecer sanções pode mudar este quadro? A credibilidade de sanções está num ponto baixo. Enquanto prevaleceram, deram a Maduro a justificativa da miséria de seu povo. Agora os homens do petróleo voltaram aos bares dos hotéis de luxo de Caracas, e a Venezuela estava conseguindo exportar petróleo a um preço melhor do que obtinha nas operações ilegais. Junto de uma dolarização tolerada, e eliminação dos controles de câmbio, a inflação na Venezuela, que já esteve em cifras de quatro dígitos, chegou a cair para abaixo da inflação argentina. Com mais vendas, Maduro ameaçou até abocanhar à força território petroleiro da Guiana. E no entanto, sem sanções, sua popularidade não voltou e as pesquisas de opinião lhe dão apenas uns 20% de apoio na opinião pública. E mais, davam vitória a Maria Corina Machado nas eleições.
Os Estados Unidos suspenderam quase todas as sanções desde o ano passado, nos setores de petróleo e gás, e mineração, bem como no mercado secundário de papeis da dívida, em apoio ao acordo entre governo da Venezuela e “Plataforma Unitária da Venezuela”. Esse acordo foi firmado em Barbados em 18 de outubro de 2023, sob os auspícios da Noruega e acompanhamento da Holanda e da Rússia. O acordo previa a realização de eleições em 2024. Não se sabe o quanto naquele momento todos os parceiros acreditavam de boa-fé que essas eleições seriam “inclusivas, transparentes e críveis, e tratassem as preocupações com direitos humanos” (na qualificação do Secretário-Geral António Guterres ao parabenizar os parceiros regionais e internacionais do acordo). A suspensão das sanções tem revisão marcada para 18 de abril.
Há notícias desencontradas de que, apesar de banida Maria Corina Machado, negociações continuam. Por enquanto os Estados Unidos só restabeleceram sanções à mineradora estatal Minerven que, legal ou ilegalmente, tem sido um sucesso na exportação de ouro, sobretudo para a Índia. Mesmo que voltem as sanções, serão menos eficazes porque de imediato não se anulam as ligações restabelecidas das empresas com o governo. E trocas de prisioneiros já se deram.
Não há certeza de que o governo dos Estados Unidos queira restabelecer integralmente as sanções, já que havia interesses mútuos no apoio aos Acordos de Barbados. Para o governo Biden seria um feito restabelecer a democracia em um grande país da América Latina. Mas talvez a motivação mais forte seja a de melhorar a oferta de petróleo e gás não russo no mercado mundial. E há a questão dos imigrantes nos Estados Unidos. Em dado momento havia 50 mil venezuelanos entre os emigrantes que se acumulavam na fronteira México-Estados Unidos, e um dos itens do acordo trata de voos de repatriamento, que estão em curso. A vice-presidente de Maduro, Delcy Rodriguez, já rejeitou ultimatos relativos ao processo eleitoral e ameaçou interromper os voos de repatriação de migrantes venezuelanos.
A memória pode nos pegar de surpresa: agora lembrei de uma longínqua semana (em 1977) em que Celso Furtado esteve em Hamburgo para dar uma palestra no “Institut fuer Iberoamerika Kunde”, e eu, admirada com seu trabalho, um livro por ano, perguntei se dava para ele viver de direitos autorais. “Depende do que você chama viver”, respondeu com um sorriso.
Teremos eleições na Venezuela? Pois depende do que você chama de eleição.
São Paulo, 14 de março de 2024, 15:30 hs
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