O custo é extremamente elevado: por não ter sabido dosar a resposta ao ataque terrorista do Hamas, Natanyahu está transformando numa dolorosa derrota sua vitória em Gaza, comprometendo a imagem de Israel e permitindo o ressurgimento do antissemitismo. Mais de quatro meses de combate e bombardeios, mais de 30 mil mortos, a impressão é a de Israel ter entrado num enorme atoleiro, do qual não se pode ainda prever como sairá.
Numa situação dessas, sem poder resistir aos ataques israelenses, sem poder evitar a destruição do seu sistema de túneis e diante do massacre da sua população civil, o Hamas – como costuma acontecer nas guerras – teria se rendido e aceitado a derrota e devolvido os reféns. Porém, isso não acontecerá, a utilização do sacrifício da população palestina é sua melhor arma para impedir uma real vitória israelense.
As acusações de cometer crimes de guerra e mesmo a responsabilização por um discutível genocídio, estão isolando Israel e a perda do apoio do Brasil, depois das declarações do presidente Lula, é preocupante. Nesta altura, já foram esquecidas as 1400 vítimas do ataque do Hamas no 7 de outubro, as violências atrozes contra mulheres e os reféns israelenses não têm mais peso.
Nesse contexto, se pode recorrer à frase do cineasta israelense Amos Gitai, pronunciada nesta semana em Berlim, depois da exibição do seu novo filme Shikun, crítico do primeiro-ministro Netanyahu: “não existe alternativa à paz entre israelenses e palestinos”.
Mas essa paz, encontrada só em alguns períodos, tem sido rara desde a antiguidade bíblica, mesmo se Isaac e Ismael, seriam meio-irmãos filhos do patriarca Abraão, deles provindo os judeus e os palestinos. Com o decorrer do tempo, as divergências e guerras entre eles envolveram e envolvem disputas por terras e por diferenças religiosas.
Nesta semana, diante da Corte Internacional de Justiça da ONU, defendendo uma queixa levada a Haia em dezembro de 2022, portanto antes da guerra de Israel contra o Hamas, as autoridades palestinas denunciaram haver ilegalidade na ocupação por Israel de território palestino desde 1967, depois da Guerra dos Seis Dias. Com a vitória sobre o Egito, Síria e Jordânia, Israel tomou a Península do Sinai, a Faixa de Gaza, a Cisjordânia, Jerusalém e as Colinas do Golã. Essas conquistas israelenses levaram à Guerra do Yom Kippur, em 1973. Mais tarde, para resumir, em 1993, houve uma curta trégua de paz com o reconhecimento mútuo entre Israel e a OLP, organização laica, de Yasser Arafat.
O cessar fogo impossível
Essa época na qual houve um breve diálogo e entendimento terminou faz tempo. Depois do atentado do 7 de outubro, o primeiro-ministro Netanyahu jurou acabar com o Hamas. Por sua vez, o estatuto do Hamas define a destruição do Estado de Israel como seu objetivo principal. Diante desses objetivos destrutivos coincidentes, torna-se difícil negociar qualquer acordo. Cada trégua ou cessar fogo parece funcionar como uma pausa de preparação para um novo ataque. Além disso, ao contrário da OLP e o Fatha, movimentos palestinos laicos, o Hamas tem como objetivo criar um Estado fundamentalista islâmico na região. Israel não é um Estado religioso, mas é atualmente governado pela extrema-direita com o apoio religioso dos ultra-ortodoxos.
Há uns vinte ou trinta anos, essa opção teocrática islâmica teria impedido ao Hamas receber o apoio de partidos de esquerda ocidentais. Entretanto, com o aumento da imigração vinda do Oriente Médio e norte-africano, a realidade social mudou em muitos países europeus e a antiga imagem do operário acabou sendo substituída pelo imigrante árabe muçulmano.
Ao mesmo tempo, conta bastante o Irã ser o grande inimigo dos EUA. Essa nova realidade social. política e religiosa reforçou a extrema-direita, acusada de islamofobia, mas tem levado a esquerda europeia, principalmente a francesa, a rever suas posições ideológicas tradicionais, a rediscutir sua laicidade e a fazer vista grossa ao islamismo com suas teocracias. Seria a islamofilia.
Uma adaptação do feminismo ao islamismo?
As primeiras vítimas dessa islamização da esquerda são as mulheres ou num conceito sociológico, o feminismo. Na França laica, a recente proibição das meninas usarem o véu, hijab ou o foulard islâmico nas escolas por ser uma manifestação religiosa, provocou divisões e abriu discussões dentro do feminismo, envolvendo a emancipação da mulher e legados discriminatórios no pós-colonialismo.
O véu seria sem importância, nada além de um mero traje feminino, ou a materialização da condição inferior da mulher destinada ao casamento e à reprodução, na qual está implícita a proibição do homossexualismo e da liberdade sexual feminina? Uma parcela das feministas minimizou ou rejeitou esse debate como secundário, para evitar uma discriminação.
A variação do pensamento do líder da esquerda Jean-Luc Mélenchon, aceitando o véu ou hijab no espaço público, mas por sua proibição nas escolas, revela um compromisso com seu eleitorado de confissão islâmica, que poderá levar, numa próxima campanha eleitoral a defender a abrogação da lei. O que permite uma pergunta: a defesa dos princípios básicos do feminismo voltará a ser secundária no programa da esquerda, diante dos problemas sociais mais urgentes e da influência islâmica?
Usamos essa questão de uma reavaliação do feminismo francês diante da presença islâmica, ainda inserida nos debates das discriminações pós-colonialistas, para mostrar a atual influência da religião islâmica dentro da esquerda francesa. E na esquerda brasileira?
Talvez o desconhecimento dos Estatutos do Hamas tem feito muita feminista brasileira, algumas com cargo de deputadas federais, apoiarem o Hamas. O mesmo ocorre com relação a alguns líderes políticos masculinos de esquerda, cujo apoio nem sempre é ao povo palestino, mas à organização do Hamas, organização religiosa, autoritária, machista, com o objetivo de implantar uma teocracia na antiga Palestina, no modelo iraniano.
Nisso se sobressai o POC, Partido da Causa Operária, extrema-esquerda, que se declara 100% com o Hamas… “se é um grupo religioso, estamos ao seu lado e apoiamos os importantes serviços que prestam à humanidade”. Essa declaração pública rejeita os princípios básicos da esquerda tradicional, encampa os atos de uma teocracia violenta, despreza as denúncias de governo ditatorial na Faixa de Gaza e pode ser considerada como um elogio político ao antissemitismo.
É uma declaração extrema, porém o líder da esquerda francesa Mélenchon não condenou claramente o ataque do 7 de outubro e pressionado por um jornalista da BFMTV sobre se designava o Hamas como organização terrorista, negou-se a usar esse termo mas sim o de “ato de guerra”. Para ele, as duas únicas organizações consideradas terroristas pela ONU são Al Qaida e Daesh.
É nesse contexto que talvez se possa entender a frase de Lula considerando haver genocídio na Faixa de Gaza, não ter existido nada igual em nenhum momento histórico e comparando, o que ali ocorre, com a matança de judeus, ou o Holocausto, por Hitler. Imagina-se que essa frase, de repercussão mundial, seguida de uma crise com Israel, tenha sido elaborada com seu assessor Celso Amorim.
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