Generais legalistas

Generais legalistas

É preciso valorizar a postura dos militares que não aderiram ao golpe. Especialmente a resistência do então comandante do Exército, general Freire Gomes e do brigadeiro Batista Jr, comandante da Aeronáutica. Vamos ser claros: o posicionamento do general Freire Gomes estava respaldado pela cadeia de comando. Segundo o bem-informado e competente jornalista Marcelo Godoy, dos 16 membros generais do Alto Comando do Exército onze eram contrários ao golpe e de quatro a cinco eram favoráveis. Destes, dois não agiram para a concretização do golpe. 

Mais importante: quem tinha poder para pôr tropa na rua não aderiu. Os militares golpistas eram ou da reserva, ou oficiais da ativa que comandavam uma mesa ou uma gaveta, para usar uma expressão ao gosto de Elio Gaspari. O exército, principal força militar, tem, em todo território nacional mais de 800 unidades. Nenhuma delas se sublevou, prova evidente de que apesar dos pesares, a cadeia de comando manteve o controle da situação. 

As Forças Armadas, como declarou o atual comandante do Exército, general Tomás Paiva, não fizeram mais do que sua obrigação. Mas, convenhamos, isso não é pouco. Sobretudo quando se leva em consideração a ofensiva contínua e permanente de Bolsonaro para desestabilizá-la.

Não há golpe possível sem o apoio do Exército. Sem sua adesão, qualquer tentativa golpista está fadada ao fracasso. Ou a ser abortada. Esse foi um forte fator para o fracasso do putsch bolsonarista do oito de janeiro. Pouco importa para uma justa apreciação dos militares que mantiveram uma postura legalista. Se ela foi ditada pela pressão dos Estados Unidos ou por convicção. O fato objetivo é que não aderiram.

Há um provérbio, que vem do Século IV Antes de Cristo, segundo o qual o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Ora, se Braga Neto soltou seus cachorros para cima do general Freire Gomes, acusando-o de ser o responsável pela não adesão das Forças Armadas ao golpe e de ser um “cagão”, é óbvio que o então comandante do Exército foi uma pedra no caminho da intentona bolsonarista. O mesmo vale para a apreciação do comandante da Aeronáutica, xingado de traidor pelo principal braço executor da tentativa de golpe, o ex-ministro da Defesa de Bolsonaro. A postura de Batista Jr contrariou tanto os golpistas que Braga Neto deu a ordem à sua horda para infernizar a vida do brigadeiro Batista Júnior e de sua família. 

A equação é simples. Se os golpistas xingam os generais legalistas de “melancia” – verde por fora e vermelho por dentro – os democratas devem defender a postura dos militares com postos de comando que se mantiveram nos marcos da legalidade. E sobretudo preservar as Forças Armadas, como instituição. Para quem tem dúvidas, aconselho assistir o excelente documentário “A democracia resiste”, de Júlia Dualib, disponível no Globo Play. Nele, são revelados os bastidores da intentona bolsonarista. Os depoimentos do então ministro da Justiça, Flávio Dino, e do seu secretário–executivo e interventor do governo Lula nas Forças de Segurança de Brasília, Ricardo Capelli foram taxativos: “o golpe fracassou porque o Alto Comando das Forças Armadas foi legalista”.

No seu livro clássico A Arte da Guerra, Sun Tzu aconselha conhecer o inimigo como conhece a ti mesmo. Quem tem esse dom não precisa temer cem batalhas. Assim, é fundamental conhecer a estratégia de Bolsonaro. Nos quatro anos em que governou o país, diuturnamente se empenhou em dividir as Forças Armadas com o objetivo de corroer sua coesão e aparelhá-la. 

Para tal, atacou alicerces fundantes das instituições militares de qualquer país do Planeta, como a hierarquia e a disciplina. Quando a política adentra no mundo castrense tais valores saem pelas portas do fundo. Instala-se a anarquia, a baderna. Foi o que assistimos nos anos Bolsonaro. 

A deslealdade, a traição, a covardia, a ruptura de laços de camaradagem, foram inoculados nas Forças Armadas pelo bolsonarismo. As baixarias de Braga Neto contra os ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica são a mais cristalina expressão dessa política.

Recomenda o bom senso que os democratas tenham uma estratégia oposta de Bolsonaro, pautada em fortalecer a coesão das Forças Armadas, restabelecer na sua plenitude a hierarquia e a disciplina, promover sua descontaminação política para se dedicarem, exclusivamente, às suas funções constitucionais e profissionais. Faz parte da cultura militar a lealdade e a camaradagem. Em si, esses sentimentos são positivos e devem ser incentivados.

Creio que centralmente Lula tem acertado nas suas políticas de apaziguamento em relação às Forças Armadas. Essa é uma das raras concordâncias que tenho com seu governo. Parte do realismo de que só é possível promover o segundo recuo dos militares para os quarteis com os militares e não contra os militares, para parodiar uma frase excelente de José Sarney. Concretamente, com o Alto Comando das Forças Armadas e não contra as Forças Armadas. 

No acervo dos acertos do presidente está a sua decisão de, desde o início do seu governo, ter seguido o critério da antiguidade na escolha dos comandantes militares, obedecendo, rigorosamente, o almanaque das três forças. 

Lula entende a delicadeza do momento.  Há ainda muitas minas a serem desativadas. O momento exige cautela e muito caldo de galinha. Por isso, sensatamente, tem empurrado com a barriga a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos, bem como não está disposto a mexer nos vespeiros das pensões de filhas de militares e do currículo das academias militares. Claro, isso desagrada nefelibatas do seu partido e de setores da esquerda, ávidos por esticar a corda.

Esse acerto de Lula começou com a escolha de José Múcio para ministro de Defesa, não cedendo a pressões para entregar a cabeça de Múcio, reclamada por setores mais à esquerda do PT. Essa estratégia possibilitou uma relação de confiança entre a cadeia de comando e o presidente, fundamental para a estabilidade democrática do país e, assim, possibilitar que o Brasil continue vivendo o maior período de sua história republicana sem quarteladas ou intervenção militar.

Com todas as letras temos de dizer: o apaziguamento e a conciliação são o centro dessa política. Isso não significa impunidade de civis e militares envolvidos na intentona golpista. Muito menos anistia para quem conspirou contra o Estado Democrático de Direito.

Há uma linha fina separando a necessidade da punição aos golpistas e possíveis irresponsabilidades nas investigações, por parte da Polícia Federal. Creio que a PF perde o foco ao decidir investigar se houve crime de omissão por parte  do então comandante do Exército  general  Freire  Gomes e do ex-comandante da Aeronáutica Batista Júnior. Concretamente, coloca no mesmo cesto golpistas e generais legalistas que, de uma forma ou de outra, não aderiram à intentona. 

O coro para punir os “comandantes omissos” é engrossado por nefelibatas ignorantes do perigo que ainda corremos, pois o bolsonarismo não está morto. Também por parte de uma esquerda ávida por um acerto de conta com os militares. Essa esquerda que pegou em armas durante os anos de chumbo da ditadura, nunca admitiu que foi derrotada política e militarmente, durante o regime militar. 

Imaginem às vésperas da eleição, com o incumbente disputando a reeleição,  o tamanho da crise institucional caso Bolsonaro tivesse sido preso antes da eleição. Isso só seria possível com um golpe preventivo a exemplo do que fez o marechal Lott na novembrada de 1955. Outra hipótese seria os comandantes militares denunciarem Bolsonaro à Justiça. Aí eles teriam de renunciar a seus ´postos, passando automaticamente para a reserva, pois do contrário estariam quebrando a hierarquia, pois Bolsonaro era seu   chefe supremo.

E a Justiça, mandaria prender o presidente em pleno processo eleitoral? No lo creo. Se o fizesse, estaria instalada uma crise institucional imensa, no limite e com intensidade que poderia levar ao adiamento das eleições. Em vez de um presidente legitimamente eleito conforme o calendário, como felizmente temos hoje, teríamos um enorme buraco negro à nossa frente.

Essa possibilidade estava no radar do então comandante do Exército, segundo o que o tem dito  a amigos, conforme revelou o jornalista Tales Faria, da UOL: “se denunciasse ao STF as intenções do então chefe do Executivo  simplesmente criaria uma crise institucional no país, com chances de acabar propiciando uma ruptura, que era exatamente o que Bolsonaro queria”. Bingo!

Na sua versão, o general Freire Gomes diz ter preferido outra estratégia: “articular junto ao generalato do Exército para barrar a possibilidade de golpe”. Se levamos em consideração o posicionamento da esmagadora maioria do alto comando contrário ao golpe, a articulação do ex-comandante foi bem-sucedida. 

Um segundo delírio é propor o enquadramento dos ex-comandantes das Forças Armadas por não terem mandado desativar os acampamentos golpistas à frente dos quarteis. Também falou mais alto a sua subordinação hierárquica ao seu chefe supremo, o presidente, que longe de dar essa ordem insuflava a baderna em frente aos quarteis. Eles só poderiam desativar os acampamentos golpistas ou por ordem do seu chefe supremo ou por decisão da Justiça. Esse ´último fato não aconteceu. 

Para além do dilema da quebra da hierarquia, estariam entregando suas cabeças em uma bandeja para Bolsonaro destituí-los e substitui-los por generais de quatro estrelas alinhados com o golpismo. Não é difícil identificar quem Bolsonaro indicaria para ser o novo comandante do Exército: o general  Teophilo Cals, também de quatro estrelas, que já conspirava para viabilizar o golpe.

Quem vive com a cabeça nas nuvens é sempre eivado de boas intenções, mas o inferno está cheio de nefelibatas.