A solidão do exílio - autor desconhecido

A solidão do exílio – autor desconhecido

Enquanto preparava o café na cozinha acanhada de nossa minúscula casa da calle Borodin, Mariza ligou o rádio e recolheu os dois jornais chilenos que recebíamos à porta.

O cotidiano “El Mercurio”, principal veículo de ideias conservadoras do Chile, era porta-voz da direita. Fui obrigado a assiná-lo, não pelo conteúdo reacionário de suas linhas, mas porque era a melhor cobertura sobre o que acontecia no mundo associada a esperança de ler algo sobre o Brasil, apesar das notícias parcas. As matérias internacionais publicadas pelo “El Mercurio” provinham das principais agências de imprensa ocidentais. Embora esse caderno raramente ultrapasse página e meia, era a informação mais completa, se comparada aos demais cotidianos. Com avidez eu lia as “dépèches” da Reuters, Associated Press, UPI, France Presse, ANSA que me dava a sensação de romper o isolamento que o exílio me impunha, espremido como estava entre a Cordilheira e o Oceano Pacífico.

A leitura do “El Siglo”, jornal oficial do Partido Comunista Chileno, me era indispensável para compreender a situação política que o país atravessava. Era como me inteirava sobre as lutas populares que se desenrolavam diante de meus olhos. Como adepto da linha chinesas preconizada por Mao Tsé Tung, confesso que minha leitura era reticente. Apesar de expressar as posições do Partido Comunista Chileno, adepto da “coexistência pacífica” defendida por Moscou, as reportagens eram bastante completas sobre os movimentos sociais e sobre as decisões da “Unidade Popular”, coalizão de partidos de esquerda e base de apoio do Governo do Presidente Salvador Allende. Através de sua leitura, era possível ter a real dimensão e vitalidade dos movimentos populares em defesa de seus interesses e do governo que os representava, seja nas cidades, ou no campo.

Porém, havia um inconveniente: as notícias internacionais veiculadas pelo “El Siglo” eram oriundas das agências de imprensa do bloco socialista que não tinham correspondentes no Brasil. Elas se restringiam ao que ocorria nos países do bloco comunista. Os textos eram de gosto duvidoso, enfadonhos, quando não indigestos, por vezes jocosos. Não raro, a notícia vinha mesclada a uma hagiografia desabrida dos dirigentes dos países comunistas: culto a personalidade praticado sem nenhum recuo. O poder soporífero da soviética Agencia Tass era susceptível de fazer inveja à indústria farmacêutica de hipnóticos. Eu ficava admirado com o esmero com o qual os jornalistas soviéticos enalteciam a figura do camarada Leonid Brejnev, Secretário Geral do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e grande pinguço diante do Padre Eterno. Com precisão milimétrica, descreviam seus dramáticos apelos em prol da paz entre os povos por ocasião da inauguração de um ordenha mecânica destinada a extrair leite das glândulas mamárias de vacas geneticamente selecionadas em uma fazenda coletiva de Novosibirsk, confins da Sibéria.

As notícias sobre o que ocorria no mundo eram cruciais. Atenuavam o sentimento de isolamento geográfico causado pela Cordilheira dos Andes, muralha intransponível e visível de qualquer lugar da costa do Pacífico Sul. Uma cadeia de montanhas que se estende das águas tropicais de Cartagena até às correntes frias do Cabo de Hornos. Um violento choque de placas tectônicas engendrou picos de seis mil metros de altura cobertos de neve de norte a sul. Até o Chimborazo, vulcão cônico situado em plena linha do Equador aos pés de Riobamba, fica coberto pelo branco manto glacial.

Aguardava as notícias sobre o Brasil com impaciência que alimentavam minhas expectativas, raramente agradáveis. Chegavam em doses homeopáticas, abstinência que podia durar semanas e conter poucas ou nenhuma informação relevante.

Imprensa escrita, rádio e um pouco através da televisão eram os meios de informação que dispunha. Saber o que ocorria no Brasil de fonte segura era uma empreitada difícil, incompleta, quando não imprecisa. Às vezes esclarecia, porém gerava mais dúvidas do que certezas. Os raros exemplares de jornais brasileiros que me chegavam às mãos eram datados, incluindo os internacionais, como New York Times, Le Monde que, raras vezes, me regalava um amigo que trabalhava no Aeroporto de Pudahuel. Pouco se podia extrair da leitura sobre o que ocorria no seio do governo militar ou da oposição no Brasil. Verdadeiras ou falsas, as notícias me deixava sempre dubitativo. O silêncio imposto pela autocensura era a tônica nos jornais e revistas, exigindo do leitor um esforço de análise para extrair das entrelinhas aquilo que os jornalistas queriam dizer.

As informações tidas por verossímeis provinham de relatos de exilados recém-chegados e de visitantes: a direção de tal organização foi assassinada no Recife; fulano foi preso no Paraná e desapareceu; prisioneiros do Tiradentes foram transferidos ao Carandiru. Os parcos pedaços de realidade sombria que chegavam eram insuficientes para reconstituir o conjunto. 

Comunicar-se por carta sobre o que acontecia no país era impensável. Houve sequestro e assassinato de um companheiro de lutas em consequência de correspondência interceptada na bagagem de um viajante. Não raro, eu recebia cartas da família violadas pelos censores do príncipe fardado. Ao me entregar uma carta violada, o correio chileno tomava o cuidado de fechá-la com um papel e sobre o qual colocava um aviso se eximindo de qualquer responsabilidade pela abertura da correspondência. Telefone, nem pensar. Era usado para assunto estritamente familiar e urgente. Quando necessário, eu chamava o Brasil da central telefônica no centro de Santiago para tratar de algo importante em poucas palavras. Além de custar os olhos da cara, pairava no ar uma suspeita de comunicação grampeada, paranoia pura. Por vezes, utilizei o recurso da “carta noturna” que, na verdade, era um longo telegrama. Por um preço módico, enviava uma mensagem com no máximo cem palavras para dizer algo mais importante do que saudações familiares.

As notícias que chegavam ao Chile, por qualquer mídia, eram divulgadas de mão em mão, de boca em boca, gerando entusiasmos, inquietudes, tristezas, incertezas. Para nós, proscritos, inteirar-se sobre o que ocorria no Brasil era fundamental. Exílio significa abolir o horizonte temporal. Impossível vislumbrar o amanhã, seja próximo ou longínquo. O degredado – qualificativo empregado por uma jovem de Minas enquanto dançávamos de rosto colado em uma festa realizada em um “Bateau Mouche” ancorado às margens do Sena – ignora se restara dias, anos ou décadas no ostracismo. O espectro dos quarenta anos do exilio espanhol planava sobre a cabeça. Minha angustia temporal se acentuava tanto mais com o golpe militar chileno que estava na ordem do dia e com um possível epilogo de proporções trágicas, probabilidade que não poderia ser descartada.