Ah, os livros de Kafka! Não há pretos em O Processo. Nem índios. Nem outra qualquer minoria excluída. O agrimensor de O Castelo é heterossexual. Não tem tatuagens. Não tira fotografias dos pratos servidos em restaurantes. Come carne. A barata de A Metamorfose é descrita como um ser desprezível, ofendendo a dignidade dos pets. Em América, não se faz alusão às queimadas florestais promovidas pelo agronegócio. O filho neurótico em A Condenação se suicida afogando-se no Moldava. Por que não no Beberibe, um rio tão mais democrático?

Diante disso, a ONG Queremos Letras decidiu intervir. E o fez. A história endireitada de O Processo começa assim: “Algum branco devia ter feito uma denúncia anônima pois, naquela manhã, Heviléusson, também conhecido como Eclipse Total, foi sacudido na cama pela dona do quarto onde morava, pagando um preço exorbitante. Dois policiais queriam lhe interrogar”. Ele continuou a dormir, certo de que, no final dos livros corrigidos pela nova sabedoria, os heróis de pele escura sempre se safam, fazem a revolução, e se libertam dos seus opressores binários.

Por seu turno, o agrimensor de O Castelo agora se chama Centelha Vermelha. É um índio Cherokee com motor flex, 600 cavalos, duas éguas, quatro marchas pra frente e 18 pra trás, triplamente assassinado por John Wayne em filmes de Hollywood. Sem conseguir emprego desde a primeira infância, foi motorista de Uber, mas fez greve de fome no segundo dia de trabalho, protestando por não ter direito a férias, 13º, adicional de periculosidade, auxílio-paletó e licença-prêmio. Na versão endireitada do romance, o homem não mede terrenos pertencentes à classe privilegiada, para não contribuir com a exclusão social. E também porque, sendo cego, sofrendo de asma e puxando de uma perna, está aposentado pelo LOAS.

Com relação à Metamorfose, o trecho onde o pai joga maçãs em Gregor Samsa, ferindo-o gravemente, depois de ele ter virado barata, teve de ser modificado. Mas a novela, segundo alguns pensadores da esquerda identitária, critica a opressão dos trabalhadores transformistas pelo capitalismo financeiro internacional. É aproveitável, enfim. De modo que, na nova redação, o personagem principal não vira barata, mas tartaruga, que tem o casco grosso, imune a arremessos de frutas. Exceto o de um coco verde daqueles vendidos na praia de Boa Viagem.

Em América, em vez de o personagem Karl Rossmann atravessar o Atlântico em busca de novas oportunidades e, afinal, descobrir na sua nova terra o teatro natural de Oklahoma, ele é mandado para a faixa de Gaza, onde frequenta um curso de reeducação política, até ser condenado à morte pelo seu personal trainer e homem-bomba Mustafá Al-Madini, sob a acusação de preferir Xororó e os Beatles a Maomé e o Hamas. O livro se encerra com o bolero “Nunca jamás pensé llegar a quererte tanto / Nunca jamás pensé llegar a quererte así …”

Paro por aqui, pois meu espaço acabou. Kafka, se vivesse hoje, não seria escritor. Teria um canal no Youtube com dois milhões de seguidores, onde contaria, mostrando imagens chocantes de tumores bucais e infecções pulmonares, como é viver com câncer na língua e tuberculose no peito.