Para Cordulina, estimada cozinheira negra na casa de minha avó, Santa.
Acabo de ler o livro de Ana Maria Gonçalves (Editora Record, Rio de Janeiro, 2024): Um defeito de cor. Além de constituir o relato de uma saga coletiva, é um mapa social. Onde se encontram pecados e virtudes, céu e terra, amor e ódio, liberdade e grilhões. Onde se reconhece o Brasil. Infelizmente, o Brasil de hoje.
Não por pura coincidência, ao concluir a leitura do livro, dei com uma notícia na tv. No Rio Grande do Sul, um grupo de policiais militares abordou, agrediu e algemou um negro que havia denunciado um constrangimento a si.
Foi detido e levado à delegacia. Com o questionamento do governador e de dois ministros de Estado, o assunto ganhou manchete. E o negro detido, recebeu a liberdade provisória. Dias atrás, foi um entregador, no Rio de Janeiro, açoitado por uma mulher branca em Copacabana. Sentindo-se incomodada com a presença do trabalhador na calçada.
O livro foi transformado em poema, cantado pelo povo na Sapucaí, no desfile da escola de Samba Portela. Desfile deste ano. O enredo, escrito por dois jovens negros, é um belo estandarte musical. Acentua o sofrimento do negro escravo. Mas confere, nos versos, uma leveza que é mensagem de esperança.
Tratar de racismo, no Brasil, impõe duas anotações iniciais: a primeira é que racismo é problema de todos. E não só dos negros. Porque envolve a sociedade inteira nas suas relações de cidadania. E, daí, abrange justiça, educação, oportunidade. Num país em que 60% da população se declara, em pesquisa, parda. Mulata. Misturada.
A segunda anotação é que combater o racismo não é apenas ocupar gerências, ou nivelar salários. É ocupar espaço de decisão: diretorias, presidências. É decidir, comprometer, orçar, alocar. E, por fim, acabar com a impunidade. Numa palavra, talvez se pudesse dizer, por concisão, que combater o racismo é acabar com a impunidade.
Em entrevista dada a Míriam Leitão, esta noite, a autora, Ana Maria Gonçalves, disse: meu livro é uma carta a meu filho. E, nele, eu ajudo na busca da identidade dos negros. E a identidade dos negros, continua ela, não é tarefa dos brancos. É ofício dos negros. E esse ofício começou com a política de cotas.
Por que? indagou Míriam Leitão. A autora respondeu: porque a cota é um modo de distribuir poder. E, por enquanto, o poder está concentrado nas mãos dos brancos. A distribuição do poder, no Brasil, do ponto de vista racial, disse Ana Maria Gonçalves, começou com as cotas. Porque, aí, os negros botaram o pé na universidade. E a cabeça no conhecimento.
No final do século 19, Joaquim Nabuco, foi proprietário e abolicionista, monarquista e embaixador brasileiro designado pelo presidente da República. Não foi um homem contraditório. Foi um servidor da nação. Publicou O Abolicionismo. No qual defendeu que, mais importante do que extinguir a escravidão, era acabar com os efeitos da escravidão. Isto é, com a ignorância e com a inaptidão ocupacional.
Nesse livro, Nabuco escreveu: “Escravidão não significa somente relação entre escravo e senhor; significa muito mais: a soma do poderio, da influência, do capital, da clientela dos senhores; o feudalismo fincado no interior; a dependência”.
Tomando o título do livro e, nele, a palavra defeito, é de se perguntar: que defeito o de Pinxiguinha ! que defeito o de Cartola ! que defeito o de Pelé ! que defeito o de Ingrid Silva ! que defeito o de Joaquim Barbosa !
Nas páginas finais do livro, a autora escreve: “Não tenho defeito algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande qualidade, pois se fosse branca não teria me esforçado tanto para provar do que sou capaz, e a vida não teria exigido tanto esforço e recompensado com tanto êxito”.
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