Zeppelin

Zeppelin

Em 1930, o poeta Austro-Costa (1899–1953), no auge da efervescência modernista, registra, em versos livres, o excepcional acontecimento que foi a chegada do primeiro zeppelin à então pacata cidade do Recife:

A Cidade, que não dormira na véspera,

E passara o dia com os olhos nos ares,

Afinal delirou:

“Lá vem! Lá vem!

“Olha o PEIXE!

“Que beleza!”

“ZÉ… PELIN…”

“Parece um tubarão!”

À tardinha, muita gente já estava desiludida:

“Não chega mais… Só se chegar o JOÃO PELIN…”

Gente DO MATO como quê…

Toda a Cidade veio para a rua

Fazer seu trocadilhozinho…

Mas foi um gozo quando o dirigível,

Majestoso, sereno, elegantíssimo,

Deslizou sob o céu de minha terra

E beijou, com a sua sombra ultradinâmica, 

A face lírica do Capibaribe. 

[fragmento]

Ascenso Ferreira (1895–1965) também registraria, em versos irmãos aos de Austro-Costa, uma atmosfera semelhante. É de se observar que ambos os poetas fizeram suas muitas das palavras de admiração do próprio povo.

— Apontou!

— Parece uma baleia se movendo no mar!

— Parece um navio avoando nos ares!

— Credo, isso é invento do cão!

— Ô coisa bonita danada!

 [fragmento]

Uma vez beijada “a face lírica do Capibaribe”, o “elegantíssimo” dirigível atracaria no subúrbio do Jequiá. Eram 18 horas e 35 minutos na capital pernambucana. Segundo o historiador Leonardo Dantas Filho, em artigo para a revista “Algomais”, seriam ao todo “63 viagens unindo o Recife à Europa”. Seis anos depois, seria a vez de um novo dirigível,  o Hindenburg, outro gigante dos ares de então. O imaginário da cidade, desde então, jamais perdeu de vista os dirigíveis alemães.

Agora, por estes dias, o zeppelin ressurge já não “majestoso, sereno, elegantíssimo”, mas como uma assombração que, uma vez encarnada, se vier a sê-lo, será uma deselegância para com o histórico Bairro do Recife, um patrimônio público, como se sabe, tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional – o Iphan. Refiro-me, é claro, ao projeto que “pousa”, contra o bom gosto e a História, um restaurante em forma de zeppelin na cobertura de dois antigos prédios do bairro onde nasceu a cidade. O noticiário destes dias informa que o mal-assombro foi aprovado pela Prefeitura do Recife, mais especificamente pela Secretaria de Política Urbana e Licenciamento – a Sepul. Sepul? Essa sigla é metade de certa palavra e parece anunciar um esquecimento mortal!

Felizmente, os protestos não tardaram: o parecer negativo de técnicos do Iphan, as palavras do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) e as manifestações do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE e do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Enfim, com os poderes dos céus, que, aliás, há muito não recebem zeppelins, os especialistas são contra, e não podia ser diferente. Além de afrontar o tombamento do histórico bairro portuário, o projeto é de um completo mau gosto, um gesto de alturas imaginárias de poder, que talvez não passe, como costuma acontecer, de uma emanação voluntariosa de uma burguesia, digamos, tão insensível quanto pouco letrada. Enfim, “Um invento do cão”, como fala o povo no poema de Ascenso. Sendo do cão, exorcizemos logo esse fantasma que ameaça o “Antigo”, como dizem os jovens, ao abreviarem a expressão “Recife Antigo”, criada pelo “trade” e por uma  tosca imitação, que também é de péssimo gosto. 

(Quando já havia escrito a crônica acima, li, com desolação, na segunda-feira última, no “Jornal do Commercio”, do Recife, que o superintendente do Iphan em Pernambuco, na contramão dos especialistas, resolveu aprovar o pitoresco monstrengo. Pobre Recife, tão cantado em versos, tão castigado pela mais prosaica e cruel realidade!