Dias Perfeitos

Dias Perfeitos

O olhar de Hirayama. É o próprio Wim Wenders quem me fala, em entrevista para outros, desses olhos do protagonista do filme “Dias Perfeitos”. Na fila de ingresso dos idosos, que não andava, e o velho atrás de mim reclamava que a culpa era do senhor de cabelos brancos, que estava a comprar ingressos para um batalhão de velhinhas em volta dele, foi nessa fila que encontrei Emília. Com os mesmos vestidos longos, soltos, cabelos estilo Janice Japiassu e Maria Betânia. O rosto redondo de Dona Benta. Que alegria! Há quanto tempo não via Emília!

Ingressos para Dias Perfeitos só na primeira fileira, em cima da tela, para sair do filme com torcicolo. A essas alturas, já comprávamos ingressos juntas, e também tomamos algum tempo (não tanto…) da bilheteira para decidir, e rapidamente soubemos que o outro filme imperdível, Zona de Interesse, tinha sessão naquele horário. E ainda compramos antecipadamente os ingressos para a sessão seguinte de Dias Perfeitos. Dois coelhos numa paulada só. Tempo de tomar um capuchino, um copo d’água e botar os assuntos em dia, antes de enfrentar a maratona.

E vamos aos filmes. Ainda bem que o destino das agruras de uma fila de velhinhos, decidiu por nós que veríamos primeiro Zona de Interesse. Filme belo, uma obra de arte, porém sobre o horror, com uma música que afunda a gente na poltrona. Mas deixo esse para outro dia. Hoje é dia do luminoso Dias Perfeitos. 

Depois da maratona de filmes, saímos eu e Emília, a ver, na fila de pagar estacionamento, se encontrávamos algum conhecido. Sim, sim, como não. Vi que ele não lembrava meu nome, mas nesse ponto estávamos empate, pois eu também não lembrava o dele. O restaurante japonês era ali, a menos de 300 metros. Só que nossas ruas continuam em guerra não declarada e não é seguro andar à noite duas velhinhas de cabelos brancos. 

No dia seguinte, trocamos mensagens de whatsapp sobre o filme. A primeira delas foi de João Rego, que eu também havia encontrado no cinema:

“Dias Perfeitos, dirigido por Wim Wenders e Takuma Takasaki, é um filme que explora profundamente a psique de seu personagem principal, mergulhando no seu comportamento compulsivo por organização e limpeza. Através de uma abordagem psicanalítica, o filme revela como essas compulsões refletem os conflitos internos do personagem, seus desejos reprimidos e sua busca por controle em um mundo percebido como caótico e imprevisível. 

O personagem principal, cuja vida é meticulosamente organizada e limpa, simboliza uma tentativa de estabelecer ordem em meio ao caos emocional e existencial. Psicanaliticamente, essa obsessão por limpeza pode ser interpretada como um mecanismo de defesa contra a ansiedade e os sentimentos de impotência. O filme habilmente explora essa dinâmica, sugerindo que a compulsão do personagem é uma manifestação de seus conflitos internos, uma forma de lidar com traumas passados e um medo profundo da desordem e da perda de controle. 

Do ponto de vista do roteiro, Dias Perfeitos é uma obra que equilibra com maestria a narrativa psicológica com a progressão dramática. O roteiro desdobra-se de maneira que cada elemento da organização e limpeza do personagem é carregado de significado, revelando camadas de sua psique. A narrativa é construída de forma a permitir que o espectador se aprofunde progressivamente na mente do personagem, descobrindo junto com ele os motivos e as consequências de suas compulsões. (…)

Em conclusão, Dias Perfeitos é uma obra cinematográfica que desafia e envolve o espectador, oferecendo uma profunda exploração psicanalítica de temas como controle, trauma e compulsão. O roteiro e a fotografia trabalham em conjunto para criar uma experiência imersiva que não apenas entretém, mas também provoca reflexão sobre a natureza da mente humana e o desejo de ordem em um mundo intrinsecamente desordenado. (Texto do ChatGPT)”

João sabe as mágicas todas da tecnologia, quanto mais transportar para a telinha um texto tão grande que, às tantas, tive que pular, senão o espaço de minha crônica iria ficar só para ele. À mensagem dele, eu respondi:

“Excelente análise, João, embora eu discorde de tua interpretação. Pensei em escrever uma crônica sobre o filme, que me arrebatou, mas dentro de outra ótica: uma concretização, no personagem, que se expressa sobretudo pelo olhar e quase nada pela linguagem, uma concretização da visão budista da vida. Assim como o personagem Meursault é uma concretização, no livro O Estrangeiro, da teoria de Albert Camus sobre O Absurdo. A entrega à rotina como busca de felicidade. A concentração no presente, em cada atividade do dia. Uma ocupação simples que permite ao personagem poder viver o belo na natureza, na mesma árvore que a cada dia terá uma beleza nova. A entrega ao belo na música das fitas cassetes. A música que se ouve no Japão, uma conexão com o Ocidente. A vida minimalista, que carece de muito pouco para ser feliz e inspirar os outros em volta, não com discursos, mas com ações. Adorei o filme”.

E João responde: “Perfeito, Teresa. Um outro olhar, mais belo e humano.”

E eu revido: “A obra de arte é rica exatamente por isso: permite vários olhares. Apenas diferentes, segundo quem vê, ou até para a mesma pessoa, em momentos diferentes da vida”. E a prosa acaba com um “Isso” de João.

Encantou-me no filme as cenas urbanas e de interiores em Tokio. A arquitetura diversa, linda, dos banheiros públicos. Aquela casa de banho, também pública. Na vida minimalista de um solteirão, o espaço de moradia não comporta cozinha, banheiro ou lavanderia. Talvez a maior expressão de felicidade de Hirayama tenha sido na hora do banho, quando, o corpo já limpo, ele mergulha naquela banheirona que deve ser um ofurô coletivo, onde cada homem fica no seu espaço. Afunda naquela água borbulhante, com uma expressão de alegria de meninos pulando na chuva, deixando só os olhos de fora em uma bela tomada da fotografia.  

Numa hora em que Hirayama guarda os instrumentos de trabalho dentro do carro, não pude me furtar a mais um cochicho no ouvido de Emília: as faxineiras brasileiras em Boston. Personagens importantes no meu livro “Brasileiros longe de casa” (Cortez Editora, 1999), elas revolucionaram os costumes de limpeza de casa americana, levando do Brasil nossa herança indígena de limpeza, de que as mineiras são mestras. Abriram negócios, ganharam muito dinheiro. Das ocupações para imigrantes, a mais bem remunerada. Com seus potentes automóveis do ano, lá vão elas, mala do carro carregada dos igualmente potentes produtos de limpeza, lá vão elas para uma schedulle detalhada das casas onde fazer faxina naquele dia. Para se distanciar do significado de faxineiras no Brasil, lá se dizem trabalhando em seu próprio business. Uma psicóloga gaúcha se estabeleceu em Boston com uma clientela dessas mulheres, que precisavam acertar com elas mesmas o contraste de ganhar bem com uma profissão manual, da qual se envergonhariam no Brasil, professoras, bancárias, estudantes que eram.

Voltemos a Hirayama. A delicadeza com que ele colheu uma mudinha de planta no parque onde se sentava num banco para comer o modesto sanduíche, enquanto se deliciava olhando a sua árvore, colhendo na lente de sua câmera aquele momento. Troca olhares com uma moça feia. Os japoneses com quem tive o privilégio de conviver em algum momento de minha vida profissional, me propiciaram ver de perto essa delicadeza. Elisa Massae Sasaki, orientanda da Unicamp. Na defesa da tese, comparei-a a uma flor do nosso Sertão. 

(…)

Ao reler teu texto, João, após saber que foi escrito por inteligência artificial, compreendi meu mal-estar ao ler o que até então imaginava ser teu comentário. Meu desconforto na leitura advinha exatamente por não sentir alma naquelas palavras. Agora, ao saber dessa informação, não me furtei à lembrança de um dos contos surrealistas de Hoffmann, da boneca criada pelo protagonista – esse eterno desejo do homem de criar outro à sua imagem e semelhança. 

Será que a inteligência artificial vai roubar a alma da literatura?