O fragmento é uma página inteira da “Tribuna da Imprensa” (o jornal de Carlos Lacerda) em 20 de março de 1963, um ano antes do golpe de 31 de março de 1964. Tem bela foto, frases contundentes e mais de um chavão. O repórter foi Carlos Estevam Martins, que havia sido meu colega na Fenefi, no curso de filosofia da antiga Universidade do Brasil no Rio de Janeiro. A coragem da juventude e a audácia da ignorância, na entrevistada e no repórter, só quatro anos mais velho que eu. Carlos Estevam carregou nas tintas, desde o foco em Celso Furtado e no ataque ao Plano Trienal, apenas um dos capítulos do meu livrinho “Como planejar nosso desenvolvimento?”
O pretexto da entrevista fora o livrinho, lançado naquele mês. Já o título da entrevista era mais pretensioso, pois o original tinha interrogação. Todos os títulos dos “Cadernos do Povo” tinham interrogação. Além da interrogação, ouso dizer agora que a crítica ao Plano, mesmo com os chavões do momento, não foi no livrinho tão retórica quanto a reportagem. Até começa por dizer que era “um avanço, no que se refere à análise da situação econômica do Brasil”. Mostrou, tais como formuladas, as várias propostas e linhas de argumentação antes de pespegar o chavão de que pretendiam “agradar a gregos e troianos”. Até hoje ainda não aprendemos que a polarização é mais destrutiva que a procura de uma solução conciliatória.
Já então eu sabia, desde o ano de “foca” no diário “Última Hora”, que título e chamada de matéria de jornal tinham que ser isca para atrair leitor. Só mais tarde tomei consciência de que todos os jornais no Rio de Janeiro naqueles meses atacavam o governo Goulart, por motivações justas ou não, e que só a “Última Hora” de Samuel Wainer não apoiou o golpe às suas vésperas. O foco da entrevista no Ministro do Planejamento do governo Goulart foi opção dessa edição da “Tribuna da Imprensa”, que logo passaria a defender o golpe que depôs Jango no ano seguinte. Que Lacerda tenha se arrependido algum tempo depois é outro capítulo – e não foi só ele.
Como na canção da Piaf, “não me arrependo de nada”. Mas vale analisar o passado, se ajuda a entender o presente. Com “sabedoria do retrovisor”, não foi lá muito responsável criticar o Ministro do Planejamento do Presidente João Goulart no jornal de Lacerda, contra quem já circulava, correta, a pecha de golpista. Era um ano de tensões políticas extremas que ignorei, nem percebi. Nem notei o referendo de 6 de janeiro de 1963, em que 77% dos eleitores votaram contra o parlamentarismo.
Quem sabe achei que o resultado do referendo antecipado para o início de 1963 era sinal de que o Presidente Goulart estava firme no governo.Qual o quê… O veto dos militares à posse de João Goulart em 1961, depois da renúncia espetaculosa de Jânio, deixara Jango no poder com a condição de um regime parlamentarista a ser submetido a plebiscito em 1965. A vitória do presidencialismo no referendo antecipado para 1963 nem de longe convenceu as cúpulas militares de que o mandato de Jango era legal. Todas as críticas ao governo Goulart daquele momento confluíam para o golpe, independente da preferência por parlamentarismo ou presidencialismo. E o Plano Trienal, cujo resumo estava em circulação, havia sido escrito para a campanha do plebiscito, já que Goulart desde o início defendeu a volta do presidencialismo, inclusive usando para isso recursos públicos, numa batalha política em que teve que conseguir até que a justiça eleitoral determinasse que o voto seria obrigatório no referendo. O uso da máquina pública gerou rumores de que Jango estaria preparando seu próprio “golpe pela legalidade”, por assim dizer.
É verdade que resolvi ser economista porque achava que o planejamento econômico ia acabar com a pobreza, o que pode explicar o tom militante. Por mais inverossímil hoje, naqueles tempos sinceramente acreditava nisso. Verdade que Celso Furtado também queria acabar com a pobreza. Só que àquela altura já era tarimbado, já tinha criado a SUDENE, já obtivera título de doutor em economia na Universidade de Paris, já tinha publicado sua obra maior, “Formação Econômica do Brasil”, já tinha passado um ano na Universidade de Cambridge, Inglaterra, a convite de Nicky Kaldor, já era casado com a cientista argentina Lucia Piave Tosi, já tinha escrito um romance, tinha dois filhos ainda pequenos, já tinha ajudado a criar a CEPAL, já tinha trabalhado na FGV, já tinha presidido o Grupo Misto CEPAL-BNDE que apresentou em 1955 o relatório sobre a economia do Brasil que serviria de base para o Plano de Metas do Presidente Juscelino Kubitschek. Eu não tinha registrado nada disso. Nem os militares e a UDN… Nem economista eu era, o título me foi atribuído pelo repórter amigo e colega bacharel em filosofia apenas pela audácia de escrever sobre política econômica. Mas mesmo que alguém me listasse então todas as credenciais de Furtado, o foco era o documento oficial, “Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social 1963-1965. Síntese. Presidência da República, dezembro de 1962”.
Relendo hoje esse capítulo, acho engraçado. Ou deveria ficar triste? Pela primeira vez um governo no Brasil supostamente de esquerda reconhecia o déficit e a dívida pública como fontes de inflação: “o principal fator de desequilíbrio, gerador de pressão, se tem localizado no setor público”. … “A possibilidade de corrigir o desequilíbrio inflacionário dependerá, basicamente, da forma de financiar o déficit do Tesouro e da política de crédito ao setor privado”. (sic) Ora, a verdade ou falsidade de tal diagnóstico se verifica empiricamente, pela observação das séries históricas das variáveis econômicas. Um dos fatos é que o índice de custo de vida do Rio Janeiro subira uns 40% em 1961, e essa inflação havia acelerado em 1962, para cerca de 50% anual. E, no entanto, o voluntarismo da “esquerda” toda se revela aí, quando descarto o diagnóstico como sendo “teses do FMI, de Gudin, do IPES e Consultec e todos os que queriam transferir empresas estatais para grupos privados”.
O Plano não falava em privatização, mas tampouco em mais estatização, como pediam CGT e ligas camponesas, e mais outros. Propunha eliminar subsídios da gasolina e do trigo, e isso elogiei – Gudin também. Mas a armadilha é que o corte desses subsídios, necessário para o equilíbrio fiscal no longo prazo, acelerou a inflação. O livrinho ignorou o contexto: o Plano Trienal, preparado para o plebiscito do parlamentarismo, era o compromisso possível naqueles anos conturbados. Conter a inflação até teria ajudado o apoio a Jango. Não chegou a ser implementado, infelizmente. Mas era verdade que tinha contradições. A inflação continuou subindo, para 80% em 1963 e mais alta ainda em 1964.
Ainda naquele ano fui fazer o curso intensivo de TDE (Técnico em Desenvolvimento Econômico) que a CEPAL oferecia então junto com o BNDE. Os alunos eram todos economistas, e eu aceita como tal por causa do livrinho. Entre os professores do curso, quase todos funcionários da CEPAL, estava Furtado, que já não era da CEPAL e nem era ortodoxo, preocupado com a realidade empírica. O melhor professor era Anibal Pinto Santa Cruz, e o mais sensato, conseguiu evitar que aquela turma insistisse em ter Leonel Brizola como paraninfo. Sabia mais que nós do delicado contexto político. Escapamos por pouco! Dá uma ideia do clima da época. Inesquecível Don Aníbal, que ainda consegui reencontrar em 1995, quando fui para o Chile como Diretora de Meio Ambiente e Desenvolvimento da CEPAL. Nosso professor mais bonito era Celso Furtado, alto e magro, olhos verdes e mãos de pianista, e elegante sempre. Sua matéria era desenvolvimento regional, tinha deixado o Ministério do Planejamento e voltado a Superintendente da SUDENE.
E havia três jovens que me impressionaram pelo exotismo: se engalfinhavam, aos gritos que não conseguíamos acompanhar, era uma briga lá entre eles: Carlos Lessa, Maria da Conceição Tavares e Antonio Barros de Castro. Que me perdoe Antonio Castro essa lembrança, que era o mais didático e o mais sensato dos três. Que me perdoe Conceição, das suas aulas de TDE o que lembro é que, grávida, nos disse que saia mais caro ter um filho que comprar um fusca; e os meninos elogiavam as pernas da professora. Carlos Lessa ainda me ajudou quando perdi meus empregos com o golpe, intermediou que eu fizesse para a CEPAL um estudo do mercado de óleos vegetais no Brasil.
Acabei entre os “primeiros alunos”, que ganharam de prêmio uma visita ao Recife para conhecer a SUDENE. Fui fazer o curso de economia em 1964, à noite, que de dia eu trabalhava no ISEB. Com a interrupção depois do golpe, meu título formal de economista só foi obtido em 1968. Ainda acho, como dantes, apesar de todos os fracassos e da lentidão difícil de aceitar, que são os economistas – se souberem formular políticas que consigam aumentar produção e consumo de modo minimamente igualitário e permanente – os profissionais tecnicamente mais preparados para reduzir a pobreza.
Nas duas décadas seguintes, 1970s e 1980s, Celso Furtado foi amigo e até, de novo, meu professor, como já havia sido meu professor no Curso de TDE (Técnico em Desenvolvimento Econômico) CEPAL-BNDE em 1963. Em Cambridge, Inglaterra, onde cheguei no último trimestre de 1973 e fiquei até 1975, Celso Furtado foi um ano “Simon Bolivar Professor” (no tempo dos petrodólares em que venezuelanos era muito ricos e financiavam uma cátedra na Universidade de Cambridge) e todos os brasileiros, eu inclusive, assistiam as aulas dele sobre formação econômica da América Latina. Fomos uma turma privilegiada, pois Antônio Callado, britânico desde sempre, foi “fellow” em Cambridge no mesmo ano de Furtado.
Estavam em Cambridge naquele ano, Marcelo de Paiva Abreu e Alice de Paiva Abreu, Winston Fritsch e Lilian Chami de Amorim, Milton da Mata e Eutália Roldão; Lourdes Sola, que estava em Oxford, aparecia com frequência e ficou meses seguidos; com menos frequência vinha de Oxford, onde fazia sua graduação, Henri Philippe Reichstul. Também estiveram lá alguns meses Antonio Barros de Castro e Ana Célia Castro, Edmar Bacha esteve de passagem, também Ivan Ribeiro (à época na FAO em Roma), ia esquecendo Maria José Cyhlar Monteiro e Jaime Monteiro. E havia mais algum brasileiro fora da área de economia, com quem a gente tinha menos contato. Revi Jorge Zahar em duas ocasiões, mas não veio a Cambridge, vinha a Londres e Reading, onde estavam estudando filha e genro, e sempre levava um montão de chocolate maravilhoso. Furtado era de novo meu professor mais bonito, mas Winston Fritsch ironizou, disse que era a “aura”, que eu não acharia isso se o tivesse encontrado como caixa ali no Barclays em Cambridge. Ora, aura! Mais aura ali que o Nicky Kaldor? Até estive uma vez na “High Table” do King’s College convidada por Kaldor. Mas bonito? Verdade que vi o tremendo sucesso que teve Kaldor, ao começar, com uma introdução em húngaro, sua apresentação no congresso da International Economic Association em Budapeste, em 1974.
Em 1977, no Institut fuer Iberoamerika Kunde (Instituto de Assuntos Iberoamericanos) em Hamburgo, conseguimos que Celso Furtado viesse dar uma palestra. Lembro que, revelando-se leitor de Thomas Mann, Celso Furtado quis ver a cidade dos Buddenbrooks, Lübeck (que para mim ainda era a cidade do marzipan), ao norte de Hamburgo, algo como uma hora de carro.
Voltei a vê-lo nos meus tempos de ONU, enquanto foi membro do CDP (Committee for Development Planning) da ONU. Celso Furtado foi o brasileiro no CDP depois de Isaac Kerstenetsky, pioneiro e criador das nossas contas nacionais, que foi o primeiro do Brasil a fazer parte do CDP. (Ainda tive a sorte de rever Kerstenetsky em reunião da ONU em 1981.) Celso Furtado foi membro do CDP de 1981 a 1986, participou de suas reuniões e assinou seus relatórios de 1981 a 1986. Depois que Celso Furtado saiu do CDP, nunca mais o vi nem soube de sua atuação. Tenho aqui na estante mais de 20 livros dele, mas nem sei qual deles é o último. A partir de 1987, até 1992, o economista brasileiro no CDP foi Edmar Bacha. O Comitê mudou de nome, o P passou a ser de “Policy”.
Depois do planejamento, também uma teoria econômica específica para países subdesenvolvidos viu seu prestígio declinar. E a economia estruturalista de origem cepalina antiga foi perdendo seus adeptos quando fracassou no combate às hiperinflações latino-americanas e até a CEPAL deixou de ser “cepalina”. O CDP passou a uma fase de busca de políticas de sustentabilidade ambiental, passou às políticas do mais longo prazo. Uma pergunta continua a me intrigar: por que, tendo a ONU cinco comissões regionais (a da África ECA, a da Ásia e Pacífico ESCAP, a da Europa ECE, a da Ásia Ocidental ESCWA, e a da América Latina e Caribe, CEPAL), foi a da América Latina aquela que viveu as inflações mais altas e hiperinflação? A primeira e aquela reputada como a mais influente em economia.
Ótimas reminiscências!
Enquanto você fazia o TDE no Rio, eu o fazia no Recife. E lembro bem como o velho PCB, a que estive ligado, em um dos seus muitos equívocos, combateu o Plano Trienal. Queriam um plano revolucionário, e o Dr. Celso afirmou estar fazendo apenas um plano de governo. Mário Alves, um dos teóricos do PCB andou fazendo conferências contra o plano, pelo Nordeste. Mas não creio que o objetivo do plano fosse apenas eleitoreiro.
E quanto ao Carlos Estevam, que chamávamos de Estevão, era figura de proa do CPC – Centro Popular de Cultura da UNE, e um primor de radicalismo. Em discussão com o MCP – Movimento de Cultura Popular do Recife, argumentou que, enquanto o MCP preparava seus “alfabetizandos” para a vida, o CPC pretendia preparar os seus para a revolução…
Não sei qual foi a posição de comunistas ou do Partido Comunista nesse assunto, não me interessou especificamente. Tive contato com o que mais tarde foi chamado de Partidão durante meu tempo de movimento estudantil secundarista, em 1956. Depois de entrar na Universidade o interesse morreu, por razões diversas. Até onde sei, comunistas circulavam livremente pelo Rio de Janeiro nessa época, inclusive no ISEB, mas não sei que posições defendiam. Na verdade, já tinha os meus motivos (ou traumas) para não me interessar pelas posições deles. Em 1960 trabalhei no jornal “Hoje”, como repórter de economia, mas ninguém me determinava nada, que já então, bacharel em filosofia, não mais aceitava orientação de quem quer que fosse. O “Hoje” se empenhou pela eleição do Gal. Teixeira Lott. Só soube que o jornal fora fundado pelo Partido Comunista quando ele fechou, quando Marighella veio informar aos jornalistas do fechamento (pois os aventureiros haviam fundado o jornal achando que Lott eleito iria sustentar o jornal). Lembro perfeitamente o quanto fiquei indignada e protestei contra Marighella por seu aventureirismo e por ter aliciado jornalistas de outros jornais, alguns pais de família, que não foram informados da jogada e do seu risco e ficaram sem emprego. Consta que houve gente admirada com minha coragem, aos 22 anos, de espinafrar o homem, mas eu não tinha razão nenhuma para ser reverencial com um aventureiro irresponsável.
Já que o começo do artigo traz minha “descoberta” tardia de que o Plano Trienal era um programa de estabilização, vou registrar o que diz Furtado (em entrevista de 1995) no livro “Conversas com Economistas Brasileiros (Editora 34, 1996): “A política do Real é uma busca de estabilização. Considero que a política de estabilização era uma obrigação do governo, uma dívida que tinha com o povo, pois sujeita-lo à desordem da instabilidade é o pior de tudo. A população tem o direito de exigir do governo uma administração razoável da economia. Assegurar a estabilidade dos preços é um dever do governo.” (p.86) Pedro Malan citou esse trecho de Furtado no Seminário divertido e didático com que a PUC-Rio comemorou os 30 anos do Plano Real, em 18 de abril de 2024. O seminário está no youtube.