Inferno

Inferno

Um dito popular antigo nos diz que “O diabo sabe das coisas não é por ser diabo, mas por ser velho”! Sabedoria que privilegia o fato de se ser velho e de se ter memória. Mas, do ponto de vista histórico, o inferno é ainda mais velho do que o próprio diabo. O inferno, portanto, nasce antes, e o diabo, depois. É o que testemunha, dentre tantas outras curiosidades, o último estudo do historiador Georges Minois recentemente publicado no Brasil, “História do Inferno”, com tradução de Fernando Santos.

Ao contrário de “o menino mais velho” do famoso romance de Graciliano Ramos, “Vidas Secas”, que “nunca tinha ouvido falar em inferno” e pede explicações à mãe,  que logo lhe explica tratar-se de “um lugar ruim”, nós outros parecemos, desde sempre, conhecer a palavra e a coisa, por efeito da educação recebida, vale dizer: da própria cultura em que estamos imersos. 

Minois começa por dizer que “A ideia de inferno é um traço permanente de todas as civilizações”. O inferno é um velho conhecido da humanidade, e o inferno cristão “[…] é o mais completo, o mais sistemático, o mais desesperador, a ponto de ter se tornado um arquétipo”. Para o bem e para o mal, como reflete o historiador, “A história do inferno é a história do homem confrontado com sua própria existência”.

A despeito de o inferno estar presente, embora com outras e pitorescas características, em várias civilizações orais e remotas, será “[…] com as grandes civilizações orientais, com códigos de conduta moral desenvolvidos e individualizados, que surge a ideia do inferno como lugar de sofrimentos punitivos”. Mas as penas infernais, naqueles bons tempos (!) imemoriais, não eram eternas, mas provisórias. O inferno, então, era relacionado, por se ter alguma vez escolhido o mal, a uma quebra, senão destruição, de uma ordem cósmica: “A desordem é o sofrimento”. Para um entendimento mais afim dos dias atuais, será preciso esperar pelo persa Zoroastro, no século V a.C., que, com seu dualismo entre bons e maus, muito influenciará o próprio cristianismo. O inferno cristão, pondera Minois,  nascerá do encontro entre os infernos do Oriente Médio e dos infernos greco-romanos. O “nosso” inferno também é, parodiando Vinicius de Moraes, uma arte do encontro!

Com os gregos, o inferno, por assim dizer, amadurece. Hesíodo e Homero são as principais referências. Mas, como ressalta Minois, os infernos, ao se tornarem poéticos ou filosóficos, são “muito pouco religiosos, pois o que eles propõem é uma resposta humana ao problema do mal”. A maioria dos filósofos e intelectuais (dentre eles, Heráclito, Demócrito, Aristóteles, Sócrates…) desconfiam dos infernos. É que eles acham que os deuses não estão nem aí para a humanidade. O inferno era visto como uma criação dos poetas. Lucrécio (55 a.C.), ele próprio poeta, além de filósofo, legará uma concepção que chegará até nossos dias: o inferno é sobretudo angústia existencial.

Ao passar pelos antigos hebreus e pela Bíblia, Minois nos revela, sobretudo no Novo Testamento, um  relativo silêncio sobre o tema (“doutrina vaga e ambígua”), embora no Antigo Testamento, no Livro de Daniel, surja, pela primeira vez, uma referência ao inferno eterno. Por sua vez, na alta Idade Média, os monges começam a “revelar” ou a elaborar, com crescente vivacidade, quadros infernais, e isso em consonância com a preocupação dos primeiros cristãos com a sobrevivência da alma e seu póstumo destino. Datam dessa época não só a orientação dos chamados “Pais da Igreja”, como a nascente visão de teólogos, dentre eles Tomás de Aquino, em quem o historiador aponta um certo “constrangimento” e tergiversação em conciliar a ideia de um Deus infinitamente bom com um sofrimento eterno infligido às suas criaturas (constrangimento igualmente atual e sempre de difícil compreensão).

O inferno, sugere o estudioso francês, e não sem razão, é muito mais poético que o seu antípoda: o paraíso. “As delícias dos eleitos muitas vezes dão a impressão de um tédio mortal […]”. Não por acaso, o gênio de Dante, inspirando-se na tradição, fará do “Inferno” o maior e mais vivo momento de sua obra. Como recorda Minois, o fato de dizermos “dantesco” sempre significará uma “visão infernal”. O poético, desde as origens, cristaliza anseios e temores, transportando-os para a vida imaginária e espiritual. A propósito, em seu livro “Den Himmel zum sprechen bringen: über Theopoesie” (“Fazer falar o céu: sobre teopoesia”), o filósofo contemporâneo alemão Peter Sloterdijk aprofunda a questão de como poesia e religião, entrelaçadas, estão no fundamento da nossa civilização, de como procedimentos literários se relacionam a palavras e pensamentos dos deuses.

Finalmente, Minois conclui abordando os séculos XIX e XX, quando nos mostra como o inferno assume aspectos nada transcendentes, dos quais a literatura dos poetas malditos (Rimbaud, Baudelaire, Lautréamont, dentre outros) e de escritores como Balzac, Camus, Dostoievski nos dão um soberbo espelho. Para o historiador, “[…] sob vários aspectos, o século XX merece o título pouco invejável de ‘século dos infernos’”, uma vez que nele brotaram duas guerras mundiais, genocídios, campos de concentração e massas famintas. Quanto à Igreja Católica, após o Vaticano II, tudo indica que vai levando tão quente assunto numa espécie de banho-maria. O grande teólogo  Joseph Ratzinger, que viria a se tornar o papa Bento 16, chega a lamentar que o assunto tenha sido marginalizado no debate teológico. Com o grande recuo do medo do Além, a Igreja trata o inferno com prudência e sem visões dantescas. Parece não querer pôr a mão no fogo!