Prestidigitador na Idade Média – autor desconhecido.

 

Meu pai era um sujeito de tiradas engraçadas. Mais de vinte anos depois de sua morte, à medida que me aproximo da idade com que ele se foi, ainda vejo graça em algumas de suas “boutades“, a maioria delas em total desacordo com os cânones de convivência que nos pautam. Certa vez, adolescente, levei um amigo para almoçar. Ele foi bem tratado, é claro, e papai fez as perguntas de praxe dessas ocasiões, ou seja, a que se dedicava o pai do colega, o que ele pretendia cursar na faculdade etc. Em dado momento, perguntou sobre as habilidades linguísticas. Acaso já conversava bem em inglês? “Eu entendo alguma coisa de espanhol”, respondeu o convidado. “Como é? Entende o quê?” Foi como se a conversa tivesse perdido todo interesse. Mais tarde, quando estávamos sós, papai me interpelou. “Que espécie de cara é esse? Qualquer analfabeto em português entende um mínimo de espanhol. Esse sujeito personifica a preguiça. É vergonhoso”. Daí em diante, “entender espanhol” passou a significar lá em casa uma espécie de opção pelo menor esforço. Para papai, o que era obrigação não podia ser elevado a ambição. Falar castelhano era muito pouco; alegar que apenas o entendia, era aberrante.

Tenho sentimentos semelhantes aos paternos quando um sujeito me diz que tem por ofício o de marqueteiro político. “Como é?” Embora tenha respeito pelas formas que o indivíduo engendra para ganhar a vida – do charlatanismo de Olavo de Carvalho à mendicância profissional, dessas em que o pedinte volta para casa de táxi depois do expediente -, a vida me mostrou que poucas ocupações podem ser tão híbridas quanto o do milagreiro eleitoral. E aqui estou sendo benevolente. Peguemos todos os presidentes brasileiros desde que nasci, em 1958, até hoje, e não veremos um só caso de sucesso por conta de um “spin doctor“. Nem Dilma Vana precisou de urgentistas. O caso mais retumbante seria o de Lula com o baiano Duda Mendonça. Mas aqui estamos falando de uma imensa complementaridade, o que invalida a premissa. Ou seja, tratava-se de um candidato pronto, portador de narrativa poderosa, com o mais sagaz dos marqueteiros – que tinha, ademais, um olhar fino para agregar poesia às pautas substantivas. No começo dos anos 80, no aniversário das Óticas Ernesto, de Salvador, Buba Weckerle me apresentou Duda, o criador das peças que emocionavam a Bahia. De Buba a Lula foi só uma questão de escala.

Assim sendo, na pátria que mais idolatra os marqueteiros políticos – criação tão brasileira quanto os “martelinhos de ouro” da funilaria -, eles nem sempre se esmeram em contar a história de seus clientes. Eles preferem alterá-la, se relatada pelo candidato, por uma patranha que eles inventem – mesmo que à custa do sequestro da biografia alheia e o consequente prejuízo eleitoral. É como oferecer um roteiro à maioria de nossos cineastas. Dificilmente eles vão levá-lo tal e qual à tela. Por estranho sortilégio, preferem contar a história deles, mesmo que comprem os direitos da obra preventivamente, impedindo que outro a reproduza. É, pois, discreto, quase tênue, o compromisso do marqueteiro com o candidato e sua plataforma. O compromisso primário dele é com ele, com sua reputação, com engordar o gado dentro da perspectiva pessoal de carreira. Age como oncologistas plotados nos protocolos que abastecem bancos de dados globais que, sim, ajudarão a ciência mundo afora. Mas não necessariamente o paciente João ou Maria. Cabe a João ou Maria dizer o “basta”, que quer morrer ou viver à sua maneira – como bradou o cineasta Jean-Claude Bernardet a Mario Sérgio Conti, numa entrevista antológica.

Para o candidato, o marqueteiro assume ares de semideus. É na época eleitoral que o político mais escuta. Ademais, é um dos períodos em que ele fica mais dócil e manobrável. É quando eles, a despeito de egressos da seara do poder, têm mais dúvidas (e dívidas), expectativas e incertezas. Inseguros quanto à atratividade da proposta que vão levar à sociedade, eles se veem diante de intuitivos que já transitaram por relações públicas, comunicação social, assessoria de imprensa, pesquisa de mercado, jornalismo ou advocacia administrativa. A máxima dos marqueteiros é, evidentemente, a de que o cliente não pode comandar o processo. Isso se tornou assustador com o advento das redes sociais, que desbloquearam a interação do político com o eleitor. Daí resultou o medo exponenciado de se tornar um elo prescindível. Não à toa as áreas de marketing digital, que nada mais são do que centrais de redundância, tentam criar uma cortina entre o ator político e a sociedade, interferindo na ressonância. Estou sendo cruel? Só um pouco. Certamente que não é o único ofício cujos contornos turvos surpreendem. Mas é sempre divertido ver nossos ases peregrinando pela América Latina à procura de barbadas.

Em nenhum país há tanta idolatria quanto aqui. Meca dos aspiracionais, rivaliza com ser jogador de futebol. O quanto será que isso diz sobre as distorções de nossa representatividade?