Alain (1869–1951), sempre com um olho na psicologia e outro na sociedade, observa num de seus instigantes textos: “Irei até a propor alguma coroa cívica para recompensar os homens que teriam tomado o partido de ser felizes. Porque, segundo minha opinião, todos esses cadáveres e todas essas ruínas, essas despesas, essas ofensivas e precaução são obra de homens que nunca souberam ser felizes e que não podem suportar aqueles que tentam ser”.
Evidentemente, num “vale de lágrimas” como o nosso mundo, é fácil encontrarmos os infelizes. Por isso, o pensador francês nos fala de homens que “teriam tomado o partido de ser felizes”, como que sugerindo que a felicidade, podendo ser uma escolha, não é algo utópico. Também por essa razão, Alain considera que há homens “que nunca souberam ser felizes”. Logo, é preciso “saber ser” feliz. Existem, porém, aqueles que “tentam ser”.
A felicidade, como se sabe, é expansiva, extrovertida. A outro francês, Marcel Proust, o bem-estar dos belos dias nos torna “centrífugos” (cf. em “O caminho de Guermantes”). Já o poder, quase sempre ensimesmado e enrijecido por normas e sentimentos que almejam perpetuá-lo, é praticamente um antípoda: a infelicidade o cerca por sua própria natureza (auto)repressiva. O poder é centrípeto, e sua expansão é de outra ordem, pois é dirigida aos meios, ou melhor, a fazer de meios o que está ao seu alcance.
Alain nos fala acima de “cadáveres” e de “ruínas”. A infelicidade é destrutiva. Caim continua matando Abel. Todos os dias, os meios de comunicação nos mostram pilhas de cadáveres e paisagens arruinadas. Apesar disso, pela frequência da exposição de tais imagens, naturalizamos a infelicidade dessas duas formas cruas e dolorosas: cadáveres e ruínas. A infelicidade não é apenas “não felicidade”, ela tem algo de ativamente ofensivo. Ela parece querer nos levar a um sorvedouro absoluto.
Recentemente, com a ascensão globalizada de novos fascismos (um “feixe” de fascismos, para lembrarmos a simplória origem do termo!), o que vemos são líderes claramente infelizes, vários deles cada vez mais afundados em sua infelicidade, destruindo e tentando destruir os rebanhos e pastos dos que, como diz Alain, tentam ser felizes. É ativa a infelicidade desses líderes. Podem gostar de cães e segurar criancinhas, podem enviar flores para seus mortos, podem inundar de beijos as suas amantes, nada disso exorciza a infelicidade que os nutre. De fato, eles só são “felizes” criando cadáveres e ruínas, trabalhando para a Morte. Esses líderes sombrios radicalizam o sentimento do próprio poder, precisam do excesso, representam, evidentemente, um retrocesso civilizatório, uma vez que a felicidade é, por sua vez, nesse sentido político, um esforço contra a Morte, a opressão, a tortura e em defesa do bem-estar, da construção, do bom humor, do crescimento e da plenitude.
Por natureza, os líderes infelizes são contra a democracia. Entre eles mesmos, é difícil seguir outras regras que não as que lhes dita a própria infelicidade. No fundo, sabem que estão sós, atolados num solipsismo hostil. Por isso, antecipam-se em fazer ameaças, impotentes de qualquer felicidade. Se assim é, como poderiam desejá-la para os outros, como suportariam a infelicidade de perderem, se a possuíssem, a própria e esquiva felicidade? Obviamente, sequer lhes passa na consciência quaisquer dessas questões. Do ponto de vista político, não desejam mais que ter autômatos a seu lado, a quem podem dar ordens incontrastáveis. Por isso, uma vez questionados, surpreendidos pelo contraditório, só lhes resta o furor e a força das armas. Daí que o Direito, base civilizatória da convivência social, seja uma de suas vítimas preferidas e passe a ser não mais que um simulacro.
Como sugere Alain, não é fácil ser feliz, e tomar o partido da felicidade requer uma “recompensa”. Portanto, é preciso um esforço até se ganhar a imaginária “coroa cívica” proposta pelo filósofo francês. Pensador de tácitas sugestões, Alain não escreve, mas bem poderia ter escrito que, ao fim e ao cabo, tal “coroa cívica” caberia a toda a sociedade que fizesse a escolha pela felicidade.
Sim, penso que, neste exato momento, vários infelizes governam o mundo, malgrado aqueles líderes que, a seu modo, atentos aos vícios do poder, merecem uma “coroa cívica” e possuem uma calorosa visão de esperança. Estes poucos, mesmo conscientes do mal, ainda sabem ser felizes, sem maiores “precauções”, sem “ofensivas”, sem “cadáveres” e sem “ruínas”. São, a seu modo, felizes e, desse modo, contribuem para a felicidade do mundo.
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