O caso abalou Bangu, o Rio de Janeiro e o Brasil. O caso rumoroso de um certo “Tio Paulo” e sua “sobrinha” Erika que, por esses dias, pelo bizarro da situação, estão nas manchetes, assombrando o nosso cotidiano tédio. Erika teria levado o tio, já morto, a uma agência bancária em busca de um empréstimo.  O tio assinaria os documentos necessários. Esta é a narrativa que se fixou no imaginário da população! Mas, para Erika, o tio Paulo deveria estar vivo e lúcido para liberar a modesta quantia de apenas 17 mil reais. Embora muito doente e bem fragilizado para seus 68 anos, precisando de uma cadeira de rodas, o tio Paulo, com sua “poderosa” assinatura, faria o sonhado empréstimo. 

O fato é que na hora H, no balcão de atendimento, os circunstantes observaram que o idoso estava morto, já no chamado “além”, onde, como se sabe, o capitalismo por enquanto não chegou. A agência bancária, desculpem-me bancários e banqueiros, logo se transformou numa agência funerária.  Tio Paulo passou a ser um inusitado defunto. Um defunto fora do lugar. O pior defunto, parodiando Guimarães Rosa, é o que quer morrer!

Por ora pouco sabemos. A morte de Tio Paulo nos enche de escuridão e polissemia. As perguntas se perguntam. As respostas ficam por conta de todos e cada um, até que chegue a palavra final da polícia e das investigações. Erika teria tido de fato a cara de pau de afrontar a realidade ao levar um morto a uma agência bancária? Ou, por outra, o Tio Paulo teria morrido poucos instantes antes de chegar ao balcão do salvador empréstimo? Na primeira hipótese, ela seria uma criminosa fria e teria claros problemas mentais. Na segunda, digamos, ela teria esticado a corda, supostamente ávida de botar a mão nos 17 mil reais. Como quer que seja, se ele bateu as botas no âmbito bancário (o que, pensando bem, não deveria ser raro, dados os juros estratosféricos), a Erika deve ter pensado com seus botões: “Mas, tio, isso é hora de morrer? Logo agora!”. Depois de nadar tanto, morreram, tio e sobrinha, na praia pedregosa das frustrações.

O caso, por vias oblíquas, evoca o tema da velhice desamparada. Tio Paulo de fato não estava bem. Um idoso, no seu desamparo visceral, e sobretudo se for pobre, nunca está bem. Vilipêndio de cadáver (uma precipitada suposição da população) é pouco ou nada face à covardia do vilipêndio aos idosos. Estes, como as crianças, não falam: emudecem e são emudecidos, sofrem sem que os ouçam e, quando os ouvem, são desacreditados. E, como se sabe, uns e outros são ofendidos pelos mais próximos. O embate é vil e desigual. Morto  ou vivo, tio Paulo tem a nossa simpatia, pelo menos a priori. Por sua vez, Erika, conforme deixou transparecer a reportagem do “Fantástico” do domingo 21 de abril, não era má sobrinha e cuidava bem do idoso. (Sua, salvo engano, absurda prisão preventiva vem chocando a população.) É óbvio que é preciso saber dos silêncios do fúnebre incidente, inclusive quais foram a causa e a hora da morte, etc., etc.

À parte os aspectos jurídicos e criminais, o caso “Tio Paulo” encena, de um modo bizarro e tragicômico, a dicotomia ontológica de Hamlet: ser ou não ser. Tio Paulo era ou já não era? Sua morte num ambiente burocrático da vida civil parece testar nossos limites não só ontológicos, mas sociais, antropológicos e psicológicos. Podemos supor que Erika teria empurrado o tio Paulo para uma espécie de sobrevida civil. Uma vida, salvo engano, que ele não podia mais desfrutar em sua plenitude. Se tio Paulo de fato já estava morto ao adentrar a agência bancária (no que pessoalmente não acredito), Erika esqueceu de “combinar com os russos” como costuma acontecer com os que moram em castelos ou casebres imaginários. Mas nós, os vivos e circunstantes, logo farejamos e reconhecemos a morte, essa eterna inimiga. 

Ao conversar sobre o caso com um motorista de aplicativo, ele me confessou, na boa velocidade dos seus 40 anos,  que tinha medo dos mortos, no que, aliás, acompanha boa parte da humanidade desde que o mundo é mundo. Repliquei com o velho lugar-comum: que tivesse medo dos vivos! E tive a alegre ousadia de dizer que eu próprio não era um finado, que, até segundo aviso, estava bem vivo e que, felizmente, não estava indo para uma agência bancária.