Isaiah Berlin

Isaiah Berlin

“Fauna humana”, ao contrário do que parece, já é uma expressão dicionarizada e designa, coloquial e jocosamente, a própria humanidade ou, pelo menos, o conjunto de pessoas que se assemelham por ideias, ocupações, etc. Nesse último sentido, equivale a “tribo”. Mas aqui quero me reportar à humanidade, embora com algum receio pessoal de que a bicharada fique um tanto ofendida. Paciência. Falo assim porque, a cada dia, a ciência avança no reconhecimento da inteligência animal. O recentemente falecido Frans de Wall que o diga. As descobertas nos fazem cair o queixo e chegam num momento em que a natureza parece nos querer cremar por nossas burrices. Isso, porém, neste breve artigo, não vem ao caso.

O que vem ao caso, em tempos de polarização política, é que nós, humanos, sempre nos inclinamos a polarizações e dualismos. Já se disse, por isso, que toda pessoa nasce platônica ou aristotélica, que o mundo se divide entre tagarelas e lacônicos, e assim por diante num constante Fla-Flu. Nos grandes romances, quem não se lembra do embate entre Settembrini e Naphta em “A Montanha Mágica”, de Mann, e quem não se recorda dos estranhamentos entre dreyfusistas e antidreyfusistas que atravessam “Em busca do tempo perdido”?  A vida em si, claro, é nuançada, diversa, não tem esse falso conforto cognitivo que os fanáticos querem ver em tudo, e os simplistas julgam de fato existir.

Foi Sir Isaiah Berlin (1909-1997), filósofo britânico (nascido na Letônia), que desencavou uma polarização “zoológica” que até certo ponto caiu nas graças dos leitores. Refiro-me ao par “ouriços” (”porcos-espinhos”, conforme algumas traduções) e “raposas”, tal como o encontramos teorizado em “O ouriço e a raposa: um ensaio sobre a visão da história em Tolstói”. O bom Berlin foi encontrar inspiração num verso do poeta grego Arquíloco (680 a.C-645 a.C.), que pontifica: “A raposa conhece muitas coisas, mas o ouriço conhece uma única grande coisa”. 

O filósofo ressalva, a bem do rigor, que são “palavras obscuras”, mas apela certeiramente para o sentido figurado e moral. Assim, há, segundo ele, “[…] um grande abismo entre, por um lado, aqueles que relacionam tudo a uma única visão central, um único sistema, […] em função do qual compreendem, pensam e sentem […] e, por outro lado, aqueles que buscam muitos fins, frequentemente não relacionados e até contraditórios […]”. Dante teria sido um ouriço; Shakespeare, uma raposa. Pascal, Ibsen e Proust, ouriços; mas raposas um Joyce, um Balzac, um Erasmo, um Montaigne. 

O fascinante ensaio de Berlin parte de uma curiosa hipótese: a de mostrar que Tolstói “era por natureza uma raposa, mas acreditava ser um ouriço”. E quantos de nós não somos assim? Ou o contrário: somos um ouriço e pensamos ser uma raposa. De minha parte, na mídia, nas academias e nos salões, deparo-me com mais raposas do que sonha o nosso amor pelos ouriços, algumas tão felpudas e tagarelas que, diabolicamente, terminam se tornando professores de Deus”!… 

Não deixa de ser sintomático, do ponto de vista psicossocial, sabermos que na liderança empresarial predominam os ouriços. O renomado consultor e professor americano Jim Collins, em seu livro “Feitas para vencer” — sobre empresas que se destacam pela excelência — nos diz não haver dúvida de que o mais alto grau de gestão empresarial vem cabendo predominantemente aos ouriços. Eles têm a capacidade de se fixar numa única ideia que tudo ilumina e para a qual tudo parece convergir. “Simples assim”, como ecoariam os mais ouriçados!

Quanto às raposas, tudo indica que elas são bem mais numerosas que os ouriços e que preferem um cardápio que atenda à sua fome de pluralidade. Elas, conforme Berlin, “nutrem ideias centrífugas em vez de centrípetas…”.  Sua astúcia e inteligência estão a serviço de múltiplas tarefas e variados objetivos, daí a dispersão e por vezes o embaralhamento das ideias. Nada mau para se viver num mundo complexo e segmentado como o nosso. Mas também quanto charlatanismo na sagacidade de algumas raposas! Para sermos justos, digamos que há ouriços com algo de raposa, e vice-versa, ou criemos um novo chavão: há ouriços e ouriços, assim como há raposas e raposas.