Jean-Baptiste Andrea au Livre sur les Quais 2019 by Actual Litte  Creative Commons

Jean-Baptiste Andrea au Livre sur les Quais 2019 by Actual Litte Creative Commons

O que faz um romance um romance? O que faz um romance um ótimo romance? A Teoria do Romance, incrustada na própria Teoria da Literatura, provavelmente responde bem à primeira questão. Já uma resposta à segunda pergunta talvez seja mais complexa e subjetiva, até porque são muitos díspares as razões que fazem de “O amor nos tempos do cólera”, “David Cooperfield”, “Ilusões perdidas”, “Em busca do tempo perdido” ou “Memórias póstumas de Brás Cubas” adorabilíssimas obras de ficção. Para desgosto dos profetas de seu aniquilamento, o romance insiste em se reinventar.

Para mim pessoalmente, o recém-lançado no Brasil “Velar por ela”, do francês Jean-Baptiste Andrea, encontra-se no grupo dos melhores romances da literatura ocidental. O autor ganhou, em 2023, a mais alta honraria literária da França: o prestigiado e prestigioso Prêmio Goncourt, um galardão que projeta, nacional e simbolicamente, os seus agraciados com uma verdade que faria Descartes dizer: “Leio-os, logo existo”. A projeção do autor é o grande e efetivo prêmio, pois a recompensa em dinheiro cinge-se apenas a… 10 euros! Enfim, Andrea ascende à glória dos altares literários, e essa santidade lhe cai bem. Nas breves linhas a seguir, tentarei mostrar por quê.

Nosso autor não é um estreante, muito embora não se possa dizer que seja um romancista prolífico. Outros livros seus já haviam granjeado prêmios e conquistado fervorosos leitores. Mas, com certeza, e graças aos rigorosos filtros dos jurados do Goncourt, “Velar por ela” é um caso à parte. E um de seus principais encantos é o mesmo que, lá no passado, um crítico francês entendeu como um pioneirismo de Proust, outro agraciado com o Goncourt: trazer a poesia para dentro do romance. O que Andrea faz com um equilíbrio poucas vezes visto em nossos tempos.

A poesia do romance, ainda que de alta qualidade, não dispensa um enredo que nos leva de surpresa em surpresa, longe de qualquer monotonia, a nos imantar à narrativa. Nem sua poesia dispensa uma reflexão quando é necessário ponderar. Nem dispensa um fundo político que testemunha a ascensão do fascismo na Itália, pois é nesse país que se passa a história. Pelo contrário, são bem-vindas as “visitas” da História à trama ficcional, na qual, aliás, vemos o “herói” gritar, numa cerimônia oficial de premiação, uma retumbante e simbólica recusa ao regime fascista. Como se essas peças encaixadas a contento não bastassem, Andrea ainda as azeita com um humor refinado, capaz de revelar uma atenção continuada ao que é existencialmente cômico ou ao que é simplesmente risível.

Tudo isso é um inteligente e delicioso preparo à cereja do bolo: a exaltação da arte, especialmente como uma fronteira do conhecimento humano ou como um ponto de convergência do sentido existencial da vida. Mas, na trama, o que também vemos é o delineamento de um “romance de formação” (o chamado “bildungsroman” dos teóricos), no qual acompanhamos, da infância à morte, a vida de um escultor anão e pobre que tem o mesmo nome de Miguel Ângelo e que será o autor de uma magnífica e enigmática “Pietà”, cuja beleza sidera quem a contempla. É ele que encontramos moribundo num claustro do Piemonte, na Itália, no início do romance, pois a narrativa se dá em flashback, e, assim, é de sua vida aventurosa que por ele mesmo ficaremos sabendo.

Além do acima apontado, ressalto que é com fantástica maestria que o romancista cria, a meu ver, uma das mais belas amizades da literatura ocidental, a dos protagonistas: o escultor Miguel Ângelo Vitaliani e a excêntrica e rebelde aristocrata Viola Orsini, que seguem juntos da infância à maturidade. Sobre a relação dos dois, o próprio romancista comenta: “O sentimento nascido entre eles alimenta o livro”. Ou seja: a amizade é um dos grandes temas irrigadores da obra. Viola carrega uma inarredável simbologia. Sobre isso, Andrea observa: “Eu queria honrar esse tipo de mulher brilhante que tem de lutar duas vezes mais que um homem para ser aceita na comunidade, especialmente em 1916, quando começa a história do livro” (citações da matéria “O segredo da estátua”, de Ubiratan Brasil, no jornal “Valor” de 07 de junho de 2024). 

Como se pode observar, o autor reúne vários fios temáticos magistralmente entretecidos. Arte, amizade e vida social formam uma movimentada tríade polifônica. Andrea, sem se render ao simplismo político da agenda contemporânea, fere acordes complexos com o subido tom dos paradoxos, da ironia e da erudição. De resto, sem o dizer claramente, “Velar por ela” nos pede que velemos pelo romance e por tudo que esse gênero dito “burguês” pode revelar sobre a condição humana, quer quando tocada pela paixão do coletivo, quer quando embebida pelo amor ao que é único, pessoal e comovente.