Mais de 35 milhões de argentinos podem ir às urnas neste domingo 22 de outubro, para escolher o próximo Presidente da República. Nem todos irão, pois o pano de fundo é de desânimo, e o percentual de abstenção tem aumentado a cada ano, chegou a quase um quarto dos eleitores nas últimas eleições. Poderá o antigo entusiasmo dos argentinos pelo voto voltar por causa da presença de um candidato cujo apelido é “El Loco”?

São três os candidatos que saíram da peneira das primárias de agosto, em que concorreram nada menos que 22 candidatos presidenciais, um recorde. Pela ordem do resultado nas primárias, os candidatos são: Javier Milei do pequeno partido “Libertad Avanza”, a surpresa do ano, o autodeclarado “libertário”; Patricia Bullrich, oposição classificada de centro-direita, da coligação “Juntos por el Cambio”, “JxC”; e Sergio Massa, o Ministro da Economia, um peronista moderado, candidato da “Union por la Patria”, que reúne, mas não une três tendências peronistas (kirchnerismo, massismo, e uma representação de governadores das províncias).

As primárias na Argentina diferem daquelas nos Estados Unidos em que cada partido escolhe seus candidatos. Na Argentina são mais um turno eleitoral introdutório, quase sondagem eleitoral obrigatória, em que os candidatos dos partidos se escolhem por votação de todo o eleitorado independente de filiação política. Essa Lei das Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO) foi impulsionada pelos Kirchner e aprovada em 2011. Unificou o mecanismo de escolha dos candidatos de cada partido e incentiva coligações, pois exige que cada candidatura obtenha nas PASO pelo menos 1,5% dos votos nacionais. É até irônica a surpresa nas PASO 2023, já que a proposta dos Kirchner foi uma reação a dirigentes peronistas em Buenos Aires que, em 2009, escolheram para candidato um empresário pouco conhecido, Francisco de Narváez, em lugar de Cristina Kirchner.

Nas primárias, essas três candidaturas tiveram percentuais de votos próximos (cerca de 30, 28 e 27, para Milei, Bullrich e Massa). Antes das primárias quem estava na frente era Patrícia Bullrich, tratada então como virtual presidente por alguns analistas. Sua formação é em ciência política, tem experiência de governo, e reputação de pouco conciliadora. Sua campanha se concentrou nos ataques ao peronismo, enquanto Milei dizia que ela participara dos “Montoneros” em sua juventude. Reagiu anunciando que proporia uma indenização aos mortos pela guerrilha dos “Montoneros”.

Só depois da surpresa das primárias é que Bullrich passou a criticar Milei, cuja proposta de mudança comparou a “botar a casa abaixo em chamas para começar das cinzas”. Em entrevista ao “Financial Times” (16/10/2023) criticou a ideia da dolarização recordando a crise da Grécia com a camisa de força do euro, e prometeu legalizar o sistema atual de uso do dólar como poupança e do peso nas transações, sem que se saiba como um câmbio dual funcionaria. Fora isso, um ataque a todos os acordos da Argentina com a China e, como Milei, o aviso de que não permitirá a entrada da Argentina no BRICS.

Em sondagens recentes Bullrich está quase 10 pontos percentuais atrás de Milei, varrida pela antipolítica e dúvidas sobre a coerência em sua coalizão. Lembremos que Macri, com a inflação subindo, sucumbiu ao congelamento de preços antes da eleição de 2019, e mesmo assim JxC não conseguiu reelegê-lo. Bullrich não conseguiu catalisar o desejo de mudança dos argentinos, e assim o risco é que vá ao segundo turno uma polarização aguda entre a antipolítica e o peronismo. Há segundo turno quando nenhum candidato consegue, no primeiro turno, 45%, ou 40% com 10 pontos percentuais mais que o segundo colocado.

Quem é esse economista “libertário” que tem um cachorro chamado Milton ao qual deu esse nome em homenagem a Milton Friedman? Libertarianismo não tem conteúdo claro, e tem vertentes. Não deve ser confundido com o liberalismo, doutrina que passou por elaboração teórica de vários autores respeitados e testes de política econômica (e é por isso que se afirma que houve com Bolsonaro uma perversão do liberalismo). Para os libertários a liberdade é um valor fundamental. Mas a ser usada como? Para combater vacinas em nome da liberdade individual, como fez um ex-presidente do Brasil? 

Como ideologia, o libertarianismo até nasceu à esquerda – digamos –, entre operários industriais anarquistas. Vários desses anarquistas italianos emigraram para o Brasil no século XIX e consta que alguns ajudaram na fundação do partido comunista (o de antigamente, que nada tem a ver com a atualidade). Libertarianismo mantém seu parentesco com anarquismo e com individualismo exacerbado.

Concretamente, há que examinar as propostas de Milei: dolarização é a de maior impacto, que defende imprimindo umas notas de dólar com a cara dele estampada. Teria que ser discutida junto com a história das crises econômicas da Argentina, inclusive o sucesso passageiro e o subsequente desastre de uma forma de dolarização no governo Menem nos anos 1990s, através do “currency board” que conseguiu manter por alguns anos a paridade fixa entre o peso e o dólar. No momento, com a Argentina de novo à beira do default e o Banco Central com reservas no negativo, a proposta é lunática. Especialistas já disseram que seriam necessários ao menos 20 bilhões de dólares para começar (e correção dos desequilíbrios externos para continuar), também já se falou em 25 ou 30 bilhões, e gente da própria equipe de Milei estima que são necessários 40 bilhões de dólares. Falaram em criar um fundo internacional e vender cotas, mas quem embarcaria nisso? A Argentina saiu de seu 9º default em 2020 e está às vésperas do 10º, já está de novo pagando velhos empréstimos com novos empréstimos. Mais um empréstimo do FMI?

Aliás, a longa história das crises de duplo endividamento, interno e externo, é também uma história de relações sui generis com o Fundo Monetário Internacional, que muitas vezes teve com o país uma tolerância especial e fez vista grossa para algum descumprimento de cláusulas de acordo, talvez porque a exposição do FMI à Argentina é muito elevada. Como lembrou alguém, se você não consegue pagar ao banco uma dívida de 20 dólares, o problema é seu, mas, se a dívida for de vários bilhões, o problema é do banco.

Outras declarações “libertárias” de Milei são que vai usar motosserra (que inclusive carrega nos comícios) para reduzir o governo, e que vai por fogo no Banco Central pois BC é a pior coisa do universo, que Biden é socialista, e o Papa Francisco e o Presidente do Chile Gabriel Boric são comunistas, assim como o BRICS. Sua fama de irascível, e esse tipo de linguajar e tiradas histriônicas já lhe renderam o apelido de “El Loco” e têm ajudado a mantê-lo em destaque na mídia, entre jovens (que podem votar a partir de 16 anos), e nas redes sociais.

Mas há o outro lado da equação, o terreno fértil em que se alastra o seu discurso anárquico: um eleitorado desiludido de governos que se alternam há sete décadas e não conseguem deter a inflação e o empobrecimento. Com maior frequência foram governos peronistas, mas peronista ou não, nenhum conseguiu sustentabilidade no orçamento público. A situação atual da Argentina é de imensa incerteza e uma parte cada vez maior de sua população enfrenta a miséria. A renda per capita vem caindo gradualmente há 70 anos, a despeito de alguns hiatos de crescimento. E uma população que já foi de país rico ressente suas perdas, ressente que já não tem mais o amplo estado do bem-estar social que chegou a ser construído no começo do “justicialismo” do General Perón. A ampliação de benesses antes das eleições, que já se viu tantas vezes, aconteceu com Macri e de novo em 2023 com seu opositor Alberto Fernandez. A poucos meses da eleição, o governo anunciou a devolução de impostos a aposentados, microempreendedores e trabalhadores domésticos, ampliou o cartão alimentação e o crédito subsidiado. Já antes havia reduzido o contingente das pessoas sujeitas a imposto de renda e congelado preços de alimentos, além de criar bônus a serem pagos pelos governos provinciais. Isso tudo quando a arrecadação está em queda, pois a economia está encolhendo.

Dada a aceleração da inflação (de 124% nos 12 meses até agosto e subindo), que sempre afeta mais os mais pobres, essas ajudas de emergência se tornaram necessidade. Mas essas transferências feitas à custa de imprimir pesos só podem piorar a inflação, em um círculo vicioso cada vez mais difícil de interromper. A inflação que vem de irresponsabilidade orçamentária acumulada em décadas é tamanha que já não é contida pelo aumento de juros do Banco Central de República Argentina (BCRA): depois das primárias de agosto o BCRA aumentou a taxa de juros de 97% para 118%, tentando conter nova fuga de dólares. 

Olhando de fora, em abstrato, parece difícil que um governo possa indefinidamente gastar mais do que arrecada. E, no entanto, é isso o que a Argentina tem feito por quase oitenta anos. É esse o diagnóstico de um especialista em política fiscal e tributária cujo amor pela Argentina e pelos argentinos resistiu a todas as crises que ele acompanhou em detalhe, como enviado do FMI ou como amigo. Em resumo, o que ele consegue mostrar com muita clareza é que a Argentina, desde Perón, passou a ter um “problema fiscal permanente”, no sentido de que, durante mais de meio século (exceto em períodos curtos e por mecanismos insustentáveis), nunca conseguiu manter o gasto público dentro dos limites da arrecadação de tributos possível.  O desequilíbrio macroeconômico na Argentina, nos últimos 70 anos, teve como seu “combustível” principal o déficit fiscal persistente. E quanto mais o desequilíbrio persistiu, tanto mais complicada sua correção, pois tanto mais sacrifícios a população sofreria inicialmente. A imagem que ouvi Vito Tanzi usando numa palestra em abril de 2013 é a do gordo persistentemente comendo demais, exceto em períodos de dieta violenta, insustentável, que ele não aguenta, e volta a comer demais. (Vito Tanzi, “Argentina: An Economic Chronicle”, Jorge Pinto Books Inc.,New York 2007)

Parece que os governos nunca se dispuseram a cortar gastos e impor sacrifícios (em busca de se reelegerem) e nem a população se dispôs a aguentar perdas de benefícios, tratou sempre de substituir o governo. E substituí-lo de novo. E os governos se alternaram sem querer ou sem poder corrigir os desequilíbrios, o externo e o interno. De qualquer modo não vai adiantar nenhum brasileiro, muito menos o Presidente Lula, pretender dar lições e convencer nossos vizinhos argentinos de que votar num “salvador da pátria” de estilo “bolsonarista maluquete” não resolve nada. Que nossos vizinhos e irmãos tenham a sorte de escolher o menos pior. E que o Brasil, sim, consiga entender como foi que um dos países mais ricos do mundo perdeu sua riqueza. Pois nós chegamos àquele limite em que se tornou impossível aumentar a arrecadação para cobrir despesas antigas e novas.