Em março passado, o poeta e crítico César Leal teria completado cem anos de nascimento. Foi ele que, como pontífice das letras pernambucanas, apresentou-me como poeta há praticamente meio século, quando então, ao lado do jornalista Marcus Prado, era o editor do Suplemento Literário do “Diario de Pernambuco”. Até então, 1975, em meus verdíssimos anos, minha parca “celebridade” se limitara ao âmbito do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco. Alguns anos mais tarde, seria seu aluno no Mestrado de Letras dessa universidade, pós-graduação da qual foi criador e entusiasta. Tive, portanto, o grato privilégio (e a tremenda responsabilidade) de ser um jovem poeta oficialmente lançado, uma vez que César teve a generosidade de escrever um artigo em que, apresentando-me ao público,  louvava-me pelo domínio técnico (o uso da métrica e de versos assonantados).

Como já tive oportunidade de registrar, César Leal é um “poet’s poet”. Sua poesia é repassada de um exemplar refinamento. A esse refinamento, soube agregar uma visão personalíssima em que o onírico e a dominância das imagens (a fanopeia poundiana) se alimentam um ao outro. Mais ambicioso e mais sutil que muitos contemporâneos, fascinado pelas potências cósmicas, o poeta antecipa com seus títulos o quanto foi capturado pelas belezas e forças naturais, como testemunhamos em “O triunfo das águas”; “Tambor cósmico”; “Constelações” e “Invenções da noite menor”. 

César Leal sempre se mostrou uma espécie de desbravador literário. Mais do que vibrar com a modernidade baudelairiana que tanto amava, deu-se a si mesmo a missão de estar em sintonia com o futuro, fugindo a um legado de opções  neorromânticas e neossimbolistas, sentimentais e confessionais. Incorporou à sua obra uma visão técnica, metalinguística e formal do fenômeno literário. Como seu querido Baudelaire, mirou a massa humana tantas vezes perturbada  e exposta aos labirintos kafkianos do contemporâneo, da “formigante” e moderna cidade tentacular: “A cidade humana é um polvo […] (treme) em seus (alicerces) / ………../ um rumor / de / metal se amplia […];  e, além do lúcido assombro de Baudelaire, a vigorosa sombra de Franz Kafka: “[…] na máquina do mundo  / há sempre um processo (há sempre um condenado) / há sempre alguém que paga o crime que outro / cometeu………[sic]”(“Nove elegias”)…

Na esteira de Dante, de quem se fez discípulo e eminente estudioso, sempre lhe interessou o imaginário da verticalidade e a precisão poética da “alta fantasia”. Não por acaso um de seus últimos livros se chamou “O arranha-céu e outros poemas”. Trata-se (para usarmos de conhecida distinção) de um poeta apolíneo, não dionisíaco, e, por isso mesmo, afeito ao simbolismo das alturas e da luz. Ama as estrelas, mas sem o sentimentalismo que as tornaria frágeis. Ama as águas porque ausculta o seu triunfo cósmico.  Seu senso de ritmo — e todo poema é ritmo, como aponta Octavio Paz — busca a percussão oculta nas nuvens, nas aves, nas rochas, nas águas oceânicas e nas distantes constelações, como se ele, o poeta, quisesse ouvir e traduzir o pulso do mundo e sondar o coração do Universo.

É claro que César Leal foi e é mal compreendido, pois a grandeza de sua sensibilidade refoge a superficialidades de todas as espécies. Em sua obra como em sala de aula, buscou os conceitos mais elaborados, como se buscasse a própria ontologia do poema. Seu grande amor à poesia de Dante é bem um emblema do seu rigor formal e literário.

De certo modo isolado no Nordeste brasileiro, mas com sutis antenas voltadas para os grandes centros culturais do mundo, o nosso autor, por vezes, sentia na pele ou, melhor, no coração, a incompreensão da província e a falta de um reconhecimento mais efetivo, muito embora, ressalte-se, tenha ganho importantes prêmios nacionais. Talvez, por isso, certa feita, num dos seus artigos de crítica literária, não escapando aos pecados do orgulho e da vaidade, terminou afirmando que só lia grandes poetas, a exemplo… dele próprio! A despeito do elogio em boca própria, desconfio de que tinha inteira razão. Em seus cem anos de nascimento, bem que tal pecador, sem descer ao inferno ou subir ao purgatório, está a precisar de uma antologia que mostre às novas gerações o luminoso diamante dos seus melhores versos.