“Ancora c’è domani”, como foi dito baixinho por Délia numa cena, é apenas “ainda tem amanhã…”, porque ainda dava para fazer amanhã o que queria fazer e não conseguiu fazer hoje. Admito: fui ver o filme porque soube que foi fenômeno de bilheteria na Itália ano passado. Lá foi mais visto que Barbie e Oppenheimer. Por que será? Teve mais gente espantada com a façanha que transformou Paola Cortellesi e seu personagem Délia em celebridade mundial do cinema. Vi um crítico da “Folha de São Paulo” que ficou com raiva porque caiu numa “pegadinha” do roteiro, deliberada, alegoria que é crítica irônica do romantismo, e pontificou que esse filme não é arte e sim ideologia. Outro crítico paulistano atribuiu o sucesso em parte ao “fecho emocionante”, especialmente para as mulheres italianas.
Será? Mas se a gente sai do cinema sem saber nem como foi que o conto acabou! É comovente o encontro entre filha e mãe, Marcella orgulhosa de haver compreendido o que a mãe decidiu fazer, Délia feliz porque a menina finalmente havia entendido sua decisão. Mas o espectador ainda não sabe bem que decisão. E quando o dia acabar, todos ali terão que enxergar que no dia seguinte tudo continuará igual. Ainda que um dos meninos briguentos herdasse o quarto que queria, e Marcella usasse o dinheiro que ganhou da mãe para estudar em vez de comprar vestido, de imediato o cotidiano da família teria que ser mais ou menos o mesmo.
“Ainda temos o amanhã” tem enredo simples, e insinuações nem tão simples. Mostra o cotidiano de Délia, mulher de um operário desempregado, Ivano, beberrão e tipo grosso e violento. Ainda por cima esse marido, pelo que se vê em algumas cenas, é romântico, daqueles que não percebem diferença entre amor e possessão. E no caso a possessão inclui apropriar-se do que a mulher recebe do trabalho dela, naqueles ofícios que lhe são permitidos, de lavar e passar, costurar, dar injeção em doentes acamados ali no bairro.
Délia tem três filhos: Marcella, menina adolescente que sonha em casar e se desespera com a mãe que aceita os maus tratos sem expressar revolta, e mais dois moleques traquinas menores. Outros personagens são os vizinhos mais ou menos solidários com Délia, que acompanham preocupados os episódios de violência doméstica, mas nunca fazem nada para impedi-la. Mais o sogro abusador, Otávio, inválido, de quem Délia cuida, e ainda assim continua cômica hipérbole de machismo. E o mundo também aparece. O vasto mundo naquele tempo. Roma ainda empobrecida pela guerra, ocupada por tropas americanas, ainda tensa no rescaldo dos embates entre os fascistas, aliados dos nazistas e protegidos até há pouco por tropas alemãs, e a Resistência Italiana, que mal acabara de se livrar de Benito Mussolini no levante de abril de 1945. A guerra já acabou, que a rendição das forças do Eixo na Itália foi assinada em 19 de abril de 1945 (um dia antes do suicídio de Hitler). Mas a paz ainda não chegou. Tudo isso está no filme, não diretamente, mas insinuado, longe de documentário. E longe de panfletário.
Não sei se o filme está revivendo o neorrealismo italiano. Os entendidos dizem que remete ao neorrealismo, pela época, o imediato pós-guerra, e por ser em preto e branco. Talvez a cena tragicômica do almoço em que a família rica do futuro noivo, Giulio, visita a família operária (mais disfuncional que operária) queira lembrar a temática das relações entre burguesia e proletariado que é parte do neorrealismo. Mas não entendi que o filme tenha intenções realistas, de documentário. O filme é intrigante, tem muitas insinuações, cenas que funcionam como alegorias, representam algo definido para mostrar algo ali indefinido. E que diferentes pessoas interpretarão de modo diferente, segundo suas próprias histórias. Até o título e a opção do preto e branco são alegorias. E há uma aproximação com o teatro em algumas cenas. A mim lembra mais o “efeito de distanciamento” de Bert Brecht, ao falar de uma questão que ainda existe mas situá-la em 1946.
A diretora estreante até teve que explicar algumas de suas opções, propositais, para fazer pensar. Os vizinhos que se juntam ali na pracinha imaginam a brutalidade de Ivano, e a dor da sua mulher aludida pelos agudos dolorosos de uma canção. Cortellesi disse que não queria fazer do espectador um voyeur de espancamentos. A dança do arrependimento de Ivano, que ofendeu as emoções feministas de alguns que “só pensam em preto e branco”, tem o mesmo propósito de afastamento para obrigar a pensar.
É muito mais que um alerta contra a violência doméstica. O desastrado almoço mostra que o patriarcalismo e a desigualdade de gênero estão tanto na família pobre quanto na rica. Mas aponta também para o fato de que nem todos empobreceram igualmente com a guerra. Ouvi bem quando o sogro Otavio, o acamado que milagrosamente conseguiu andar até a sala do almoço do noivado, acusou o pai rico do futuro noivo Giulio de ter entregado dezenas de italianos aos alemães. No caso da Itália, “entregar” foi delatar aos fascistas os militantes da Resistência clandestina contra as tropas do Eixo.
Talvez os italianos tenham apreciado mais este filme porque conhecem mais a sua própria história e assim puderam entender melhor as muitas alusões ao pano de fundo histórico. E assim, pelo jeitão um tanto nostálgico do filme, puderam se alegrar com o quanto a Itália já mudou nos 78 anos que se passaram. Pois naquele ano em que Ivano era o marido sustentado por sua mulher Délia, a Itália ainda era monarquia, que durou desde a Unificação em 1861 até 1946. A primeira vez em que todas as mulheres puderam votar foi no Referendo Institucional de 2 de junho de 1946, que ao mesmo tempo elegeu os membros da Assembleia Constituinte. O resultado do referendo foi 54% por República, 45% por Monarquia. Bem perto de 90% dos eleitores registrados compareceram, a indicar o grau de tensão do momento.
Naqueles dias, em que Ivano está feliz achando que a filha terá marido rico, e Délia está escondendo um pouquinho do que ganha para o vestido de noiva da menina, o que valia como lei na Itália ainda era praticamente o Código de Família de 1865, em que a mulher quase não tinha direitos. Por esse Código, a mulher não podia ser guardiã dos filhos nem trabalhar para o estado. Se tivesse algum trabalho e fosse casada, não tinha o direito de administrar o dinheiro que ganhava. Se traísse o marido, podia acabar na cadeia, mas o mesmo não se aplicava ao homem. E mulheres não podiam votar. Houve tentativas de aprovar o direito de voto logo depois da I Guerra Mundial, mas fracassaram, por sucessivas quedas de governo. Pouco mudou com o governo fascista que tomou o controle a partir de 1922. Igualdade entre homens e mulheres, ao menos formal, só foi obtida na Constituição republicana que entrou em vigor em 1948. E ainda ficou faltando muita coisa. O delito de honra, que legitimava o feminicídio, em que um homem podia matar quem lhe teria infligido desonra, só foi abolido na Itália em 1981.
Quando Délia acha no chão uma foto, e resolve procurar quem perdeu a foto, porque se comove com a foto de uma família, encontrou as tropas americanas. Encontrou o homem da foto, um soldado negro, que aparece como o mais civilizado dos soldados. Que lhe dá chocolate, vê por acaso hematomas no braço de Délia, e quer tomar providências, procurar o criminoso. A cena é hilária, na comunicação entre os respectivos monoglotas. O soldado insiste em querer ajudar Délia. No filme não chegamos a saber quem jogou a bomba que destruiu o estabelecimento do pai de Giulio, que já sabemos ter sido colaborador dos nazistas. Além de que já sabemos que Délia está alarmada ao perceber que Giulio, com o seu romântico “você será só minha” declarado a Marcella, está adotando atitudes que Ivano já tivera outrora.
Tropas dos Estados Unidos entraram em Roma em junho de 1944, antes do fim da guerra. Tropas foram retiradas da Itália para concentração no front francês. Mas no após-guerra voltaram. No filme a guerra continua presente o tempo todo, como pano de fundo. Não é só Ivano repetindo todo o tempo “sofri duas guerras”, como explicação para tudo de horrendo que faz. As duas guerras mundiais são culpadas até por ele “ficar nervoso” e bater na mulher ao menor pretexto. Ainda bem que a guerra não teve o mesmo efeito para todos… Uma das cenas mais plenas de significado é a de Délia e sua maior amiga, tranquilas, relaxadas, Délia balançando as pernas como criança, ao fumarem escondidas do mundo cigarros que receberam dos americanos. Duas mulheres contentes, e não deixa de ser “por culpa da guerra”.
Eu sempre soube, desde criança, que os soldados americanos que ocuparam a Europa distribuíam chocolate e cigarros. Pois o chocolate que o soldado americano deu de presente a Délia quando ela achou a foto dele é parte de uma das cenas mais memoráveis. É quando Délia dá um pedacinho desse chocolate ao seu amigo, secreto, é claro, também pobre e de emprego precário, que estava resolvido a ir embora de Roma, mudar para o norte, onde haveria mais emprego, mais gente querendo consertar carro ou caminhão. O chocolate do soldado americano é que permitiu a Paola Cortellesi e seu talento teatral montar com grande sabedoria a “pegadinha” do roteiro (na qual por pouco eu não caí também). E que contém a maior lição moral do filme. A mostrar que imensa mudança cultural ainda falta para que de fato tenhamos liberdade, das mulheres e dos homens também, e dos vários graus intermediários vítimas das mesmas ilusões e armadilhas do romantismo.
Tratei de destacar as mensagens que consegui captar na minha leitura das imagens e dos sons. A pretensão é a de alertar contra distorções e interpretações injustas. Mas no fim o resumo: o filme é lindo, e virei fã de Paola Cortellesi, atriz, meio roteirista, diretora estreante.
O filme ainda não chegou na programação local no Recife. Mas a leitura de tua crítica, Helga, me deixou curiosa o suficiente para ir vê-lo assim que entrar em cartaz. Você é tão boa escritora em crítica de cinema quando nas acuradas análises de política e economia internacional. E justamente porque contextualiza a trama do filme na trama histórica. Fico no aguardo de nova crítica, do filme Testamento, que já está em cartaz em São Paulo e acaba de estrear aqui esta semana.
Teresa, obrigada, mas como “crítico de cinema” sou bissexto. Sobre “Ancora c’è domani” escrevi porque adoro o italianno e tinha visto o filme quando li o comentário de uma suposta feminista dizendo que o filme não é feminista (porque a mulher aceitou dançar com o marido que havia batido nela…). Achei uma ignorância tamanha, a tal feminista nem notou que Delia respondeu à filha indignada “Dove vado?”, que resolvi explicar a situação.
Feliz de ler um texto seu.
Forte abraço,
José Almino