Cais José Estelita - Recife

Cais José Estelita – Recife

Um benefício indireto dos Jogos Olímpicos de 2024, em Paris, foi a oportunidade, através das transmissões de televisão, de se rever o belo desenho urbano da capital francesa, sem a aberração de prédios monumentais, como se vê em tantos lugares do mundo como a China, Dubai e outros países que seguem o modelo americano. A arquitetura parisiense agrada enormemente, como, para citar alguns exemplos, a de Cambridge, no Reino Unido, de Bruges, na Bélgica, de Cuenca, no Equador, de Évora, em Portugal – e mesmo a do Sítio Histórico de Olinda, onde tenho o privilégio de residir. Essa é a oportunidade de lamentar o que vem acontecendo no Recife desde que inventaram de derrubar a igreja dos Martírios, em 1973, para a ampliação da av. Dantas Barreto. Sobre esse assunto me debrucei em 2016, mas não consegui que fosse publicado o que escrevi na ocasião a respeito, na coluna de que dispunha em jornal recifense. Transcrevo a seguir minha posição na época acerca do movimento de protesto contra o projeto de 2016, o qual hoje modifica de forma agressiva o antigo Cais José Estelita.

Uma reação da sociedade civil contra o chamado Projeto Novo Recife transformou-se aos poucos em belíssimo movimento social: o #OcupeEstelita. Infelizmente, na sua evolução, essa iniciativa não contou com cobertura forte dos meios de comunicação recifenses, valendo-se apenas das redes sociais que, como se sabe, não alcançam certas camadas da população. Mesmo assim, o #OcupeEstelita – inspirado nas sugestivas mobilizações aparecidas em 2011, em Nova York, com o Occupy Wall Street – ganhou a adesão de número expressivo de pernambucanos.

O que queria esse movimento? Discutir uma visão de cidade que signifique bem-estar genuíno para todos, que não sucumba à ganância insaciável da especulação imobiliária, que não deforme o que resta da linda herança urbana do Recife. O oposto do propósito do Projeto em questionamento, aprovado, sim, formalmente, nos níveis de decisão (fechados, opacos) do governo municipal, mas não submetidos a debates (abertos, transparentes) com todas as partes interessadas, com todos os atores sociais (stakeholders) relevantes. É só comparar as imagens disponíveis do Recife nas décadas de 1940 e 1950 – quando, como criança e adolescente, eu me familiarizei com elas – com as do Projeto Novo Recife e seus espigões descomunais. Que seguem o exemplo das lamentáveis Torres Gêmeas do Cais de Santa Rita. E o mote de devastação dado pelo esdrúxulo prefeito Augusto Lucena, do Recife, imposto pelos militares em 1964. Isso não podia vingar, dizia o Estelita, apoiado por enormes segmentos da sociedade.

Assim, soava como ofensa gratuita, como classificação aberrante, o que escreveu jornal do Recife a propósito das pessoas idealistas que integravam o movimento: “protestadores profissionais”. Todos os pernambucanos deveriam era agradecer a Deus por nos dar uma forma de protesto civilizada, educada, dentro da lei como a do #OcupeEstelita. Um exemplo de Primeiro Mundo, de como deve ser a reação da sociedade diante de coisas absurdas que a incomodam. Foi o Novo Recife objeto de elucubrações técnicas perfeitas? Passou por todas as instâncias deliberativas previstas? Fez-se isso de forma nítida, criteriosa e irreprimível? Quem garante? O fato é que a sociedade despertou. Com uma vanguarda decente, digna, admirável. Fim da transcrição do que escrevi em 2016.

Neste momento de 2024, exaltam-se iniciativas como a do hotel e centro de convenções, inaugurados recentemente com toda a pompa, junto do degradado bairro de São José, que se destrói a olhos vistos. Esse bairro servia de residência e  locais de negócios, possui belas igrejas como a de São Pedro dos Clérigos, do Espírito Santo, do Terço, da Penha, de São José de Ribamar. E tinha a dos Martírios, derrubada por Augusto Lucena. Teve cinema, um comércio que lembrava a medina de uma cidade moura, sem contar o lendário Mercado de São José. Não faz sentido, o desprezo quanto à beleza que o Recife já teve e a supressão do que ainda resta, com a ereção de um novo modelo de arquitetura sem qualquer encanto. Precisamos de uma consciência e de um movimento que nos livrem dessa devastação.