Passeata na Alemanha

Passeata na Alemanha

Será que não há alguma dose de histeria na reação da imprensa global e analistas às eleições estaduais de 1º de setembro na Alemanha? A Alemanha não está à beira de se tornar nazista. Nem comunista. Mas é fato que o quadro político se embaralhou e é grave, e formar governo e governar está dependente de negociações difíceis. Os três partidos que formam o “governo do semáforo” (vermelho-amarelo-verde), que negociaram em 2021 a coalizão entre socialdemocratas, liberais e verdes que governa a nível nacional, sofreram uma derrota estrondosa nos estados de Turíngia e de Saxônia.

Mais que a vitória da oposição nos dois estados, o que assustou foi o avanço do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD na sigla em alemão). Os dois estados juntos abrigam só 7% da população da Alemanha, mas o impacto destas eleições na política nacional foi imediato e vai ficar mais pesado nas eleições federais de setembro de 2025. Como a Alemanha irá enfrentar o avanço dos extremistas? Não há consenso sobre como e por que os extremistas avançaram. Não foi meramente por difundirem slogans de “remigração” e “deportação”.

Pela primeira vez, os extremistas do partido AfD obtiveram o primeiro lugar em eleições parlamentares estaduais, na Turíngia, com 32,8% dos votos. Na Saxônia obtiveram o segundo lugar com 30,6%, logo atrás da União Democrata Cristã (CDU na sigla em alemão) que teve 31,9%. Esses dois estados pertencem a uma região que ainda hoje, 35 anos depois da queda do Muro de Berlim, é chamada de “o Leste”, os 5 estados que antes da reunificação pertenciam à antiga República Democrática Alemã (RDA): Brandemburgo, Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, Saxônia-Anhalt, Saxônia e Turíngia. Já nas eleições para o Parlamento Europeu no início de junho ficou claro que a extrema direita avançou mais que proporcionalmente nesses estados. Mas naquela ocasião o caso da Alemanha não provocou maior atenção, voltada para as dores de Emmanuel Macron. Fundamentalmente, se achava que o AfD não poderia chegar a governo, já que os partidos tradicionais do país têm cláusulas que os impedem de formar coalisão com o AfD.

Todos os partidos têm a cláusula de exclusão da cooperação com o AfD. O partido União Democrata Cristã (CDU) adota a cláusula também em relação ao partido chamado “A Esquerda” (Die Linke). Pretendia-se algo como um “muro corta-fogo” (Brandmauer, como se chama na Alemanha) contra extremismos, que também foi adotado na França, e lá se chamou “cordão sanitário”. Há anos se debate tal “isolamento”, mesmo porque os extremistas foram fazendo adaptações para evitá-lo. O AfD classifica o cordão sanitário de antidemocrático e agora foi mais longe, o chamou de “tentativa de estigmatização”.

Depois das últimas eleições estaduais constata-se que tal “cordão sanitário” não funciona. Mais que isso: dá para mantê-lo? Agora, na Turíngia, o CDU não conseguirá formar um governo de maioria parlamentar sem uma coalisão com um novo partido fundado há apenas 7 meses, Aliança Sahra Wagenknecht (BSW na sigla em alemão), que obteve o 3º lugar tanto na Turíngia quanto na Saxônia, respectivamente com 15,8% e 11,8%. E assim uma parte do CDU (e uma parte do eleitorado) acha que se pode derrubar o “muro corta-fogo” para negociações com o BSW.

O desempenho dos novatos do BSW foi outra surpresa dessas eleições de 1º de setembro. Como os seus fundadores são uma dissidência de “A Esquerda” (Die Linke), BSW está sendo classificado de partido de esquerda. Mas isso por si só não ajuda nada a entendê-lo, pois em relação a imigração e segurança tem posições semelhantes ao AfD, assim como em relação à guerra da Ucrânia. Ambos querem parar o fornecimento de armas à Ucrânia e promover negociações de paz, ainda que seus argumentos sejam algo diferentes. Além de que na política social Sahra Wagenknecht prioriza a desigualdade das remunerações e não pautas identitárias que põem foco em raça e gênero. Já criticou a tal “linguagem neutra”. Podemos situá-la na esquerda por seu discurso de política externa, na linhagem dos grandes pacifistas que lideraram o partido social democrata do tempo da Guerra Fria, como Willy Brandt. 

O chanceler alemão Olaf Scholz chamou o resultado das eleições de “amargo”, mas ainda não se sabe bem que direção tomará o governo tripartite. Hoje já não há mais votos suficientes para uma “coalisão semáforo”. A análise do contexto em que se deu a derrota mal começou. O foco da campanha eleitoral do AfD foi imigração, sobretudo refugiados e pedidos de asilo. É seu foco desde 2016, quando a Alemanha em menos de ano havia recebido mais de um milhão de imigrantes. Mais ainda depois da entrada maciça dos que fugiram da guerra na Ucrânia depois de fevereiro de 2022. Hoje, dos 3.600.000 refugiados ucranianos espalhados pela Europa, um terço está na Alemanha. Esses os oficialmente registrados com status de refugiados. O número dos que deixaram a Ucrânia é pelo menos o dobro disso. O governo de Scholz já se queixou da injustiça que é ignorar esse tipo de ajuda que a Alemanha concede à Ucrânia quando se critica seu governo por não oferecer volume maior de armas.

Imigração não é a única questão que mobilizou os eleitores e afeta a formação de governos. Além disso seria necessário analisar por que os estados que eram da antiga RDA são há pelo menos uma década mais sensíveis que os outros à retórica anti-imigração. E isso teria que incluir uma análise de como o processo de reunificação afetou cada região de maneira desigual. (ft.com/content/d128f308-bc1f-4737-a679-43734124e2b6) Que rancores subsistem? Pois os dados mostram que nos últimos dois anos a economia dos estados do Leste teve desempenho melhor que os do Oeste e, no entanto, a insatisfação parece maior. (Uma análise parcial está em nuso.org/articulo/extrema-derecha-afd-bsw-elecciones-turingia-sajonia-alemania/)

De imediato, o governo federal anunciou em 9 de setembro novos controles de fronteira que deveriam entrar em vigor em 16 de setembro. Segundo a Ministra do Interior, a socialdemocrata Nancy Faeser, as medidas se destinariam a “restringir ainda mais a imigração irregular e nos proteger do perigo do terror islamista e sérios crimes”.
Sua fala remete ao acontecimento uma semana antes das eleições, e que influenciou o voto: na cidade de Solingen, no estado da Renânia do Norte-Westfália, um refugiado matou a facadas três pessoas num festival de rua e ISIS reivindicou a autoria. Desde o ano passado já estavam em vigor controles temporários mais severos nas fronteiras da Áustria, República Checa, Polônia e Suíça, agora prorrogados, e que se ampliarão às fronteiras da França, Bélgica, Dinamarca, Luxemburgo e Holanda.

O regime de Schengen para a livre circulação de cidadãos da União Europeia estabelece que o refugiado deve fazer o pedido de asilo no primeiro país da União Europeia em que entra. Mas os refugiados têm preferido seguir e chegar à Alemanha, onde a acolhida e os benefícios são percebidos como melhores. O endurecimento dos controles visa devolver os imigrantes na fronteira. Os países vizinhos, em especial a Polônia (que já abriga quase um milhão de refugiados ucranianos), protestaram contra o endurecimento anunciado esta semana, alegando uma quebra de regras da União Europeia sem consulta prévia dos países que serão afetados. Buscam uma revogação. 

Não foi só quanto à imigração que aumentou o tom e o emaranhado das pressões. A guerra na Ucrânia esteve presente nas eleições estaduais, indiretamente, na reclamação contra a infraestrutura abandonada, as outrora famosas rodovias alemãs deterioradas, pontes interceptadas por falta de reparos. E não só a piora da infraestrutura física, mas reclamações dos professores e cuidadores de idosos. O apoio à Ucrânia compete com necessidades básicas locais quando se discute o orçamento público, num país em que ainda existe uma barreira ao endividamento. Como se podia esperar, apareceram grupos que querem suspender a barreira ao endividamento para atender a necessidades da Ucrânia na guerra.

A disputa do orçamento aparece tanto na determinação das receitas quanto dos gastos. Um exemplo que afetaria a receita é a redução de impostos para a produção do carro elétrico, algo que não parece ter apoio da maioria dos alemães que apontam outras prioridades para a isenção de impostos. O partido BSW, em seu discurso, chegou a observar que medidas relacionadas com a mudança climática precisam levar em conta o efeito sobre o bem-estar social em cada etapa. E Sahra Wagenknecht, no Parlamento, já ironizou uma política que pretende proteger o meio ambiente produzindo Porsches elétricos. Tal disputa por recursos veio à tona nestas eleições quando o próprio CDU lamentou o abandono da infraestrutura, enquanto o governo apoiava imigrantes ferindo as regras de Schengen. Serão gastos alternativos? Mesmo que não tenha havido referência direta à chanceler Angela Merkel, quem tenha acompanhado de perto a situação em 2015 tem que admitir que em dado momento não existiu a possibilidade de definir prioridades. Sem ironia: as consequências vêm depois. Difícil imaginar como o chanceler Olaf Scholz poderia ter evitado a invasão de ucranianos em 2022.

Na eleição de 1º de setembro, a guerra esteve presente para além da questão dos refugiados, numa crítica que desemboca em geopolítica: “o governo deixou os alemães passar frio no inverno para apoiar a Ucrânia”. A frase-resumo remete ao embargo à Rússia, e o encarecimento do custo da energia, que causou danos desproporcionais à Alemanha. Em geral sabe-se que está aumentando a parcela das energias renováveis, mas sabe-se também que mais de metade dos domicílios alemães ainda usa gás natural e petróleo na calefação. A redução do fornecimento russo teve impacto na Alemanha não apenas no consumo domiciliar. Foi necessário construir terminais para receber gás liquefeito de outras fontes e a energia assim fornecida é mais cara, afetou a indústria e há empresas que por isso querem deslocar a produção para outros países. Fracassou, por ora, a estratégia de preparar a economia alemã para o uso de energia renovável com base numa transição apoiada no gás natural. Até usinas térmicas a carvão voltaram a funcionar. Foram efeitos de uma guerra em que o eleitorado alemão e a Alemanha não têm nenhum interesse, a julgar pelo resultado das eleições e pelas pesquisas que mostram o declínio constante dos partidos do “semáforo”. 

Por enquanto, só estamos vendo uma tentativa de formular uma nova política de imigração. O chanceler Olaf Scholz ainda tentou, sem resultado, obter o apoio do CDU para uma nova política nacional de imigração que seja de consenso. Quanto às ações que se relacionam com a guerra na Ucrânia, inclusive o posicionamento e uso de bases para mísseis de médio alcance na Alemanha, é difícil fazer previsões. Até agora, as decisões desse tipo (inclusive a provável permissão para que a Ucrânia use as armas que lhe são enviadas por membros da OTAN para ataques a objetivos dentro do território da Rússia), têm sido tomadas pelos Estados Unidos sem consulta aos parceiros cujos interesses geopolíticos podem ser outros. O Ministério das Relações Exteriores da coalisão “semáforo” está entregue ao partido “Os Verdes”. Mas este de ambiental quase não têm mais nada. Há algo menos ambiental que a guerra? Ou a volta do uso do carvão?