Georges Braque Bottle and Fishes (c.1910–12)

Georges Braque Bottle and Fishes (c.1910–12)

“Beco que nasceste à sombra de paredes conventuais

És como a vida, que é santa, pesar de todas as quedas,

Por isso te amei constante, e canto para dizer-te

Adeus, para nunca mais !”.

Manuel Bandeira, 1940, Última canção do Beco.

 

Modernidade é um bem coletivo. Mas, no século 19, foi singular. Escrita, pela primeira vez, por Honoré de Balzac, em 1823. Três décadas depois, em 1868, Charles Baudelaire consolidou o conceito. Fixando a ruptura com a tradição cultural anterior. Em Curiosidades estéticas e a arte romântica.

O eco inicial da modernidade veio com o Iluminismo. O legado da razão. Pensamento crítico. Dispensando o dogmatismo religioso. E propiciando às pessoas a chance de assumir crenças, valores e estilos de vida. O surgimento da burguesia, na versão mercantil de uma sociedade que avançava, foi outro passo. Cientistas e artistas tornaram-se aliados. Sem o sentir.

Na primeira etapa da modernidade, a ciência buscava a verdade. E a arte, desenhava a utopia. Descartes introduziu o método cartesiano na seara do pensar. Na pintura, Rembrandt e Caravaggio coloriam corpos com sangue e músculos. Numa caravana profana dando adeus a anjos barrocos. Etéreos. Divinos.

Na segunda etapa, da modernidade, no século 20, as instituições aprofundaram a luta contra o obscurantismo. De que foram exemplos fatais o nazismo e o gulag stalinista. A política converte-se no sol da esperança popular. Após a Segunda Guerra (1939-1945), a Europa volta-se para a social-democracia. Que sucumbe face aos limites fiscais dos orçamentos nacionais. E os Estados Unidos, vestido na cultura do individualismo competitivo, adota o jogo do imperialismo global.

A estado-unidense revela-se uma sociedade bifronte: de um lado, a política bélica que mutila os seus e destrói no Vietnam e no Iraque. De outro lado, exibe sensibilidade rara na música, Cole Porter e Ella Fitzgerald. E, na literatura, Ernest Hemingway e Emily Dickson. Mas, que termina, no barco da desigualdade, em naufrágio trumpiano.

Os séculos 19 e 20 apresentaram, ainda, na arte, dois ícones. Que prenunciaram, com perfeita interpretação, o drama social que começava a afetar a modernidade: Edward Munch pintou O Grito (1893). E Pablo Picasso fez de emocionada indignação uma obra prima: Guernica. O tempo passa. Artistas definem, em escrituras públicas, literárias e pictóricas, a certidão social de época. De notável criatividade e beleza. E, ao mesmo tempo, aterrorizante. Na ventania soprada de Los Alamos.

No século 21, outros ventos varrem a cinza de um tempo dúbio. Real e virtual. Concreto e digital. Verdade e mentira. Pós verdade. Exercício de puro cinismo. Exalado em retórica costurada na violência. No assoalho indigno dos sem honra. Nem verticalidade. É hora de refletir. Pensar. Distinguir. Pois não há futuro sem sobriedade. Juízo. Seriedade.

A modernidade cultural abriu as portas de um artesanato: o fazer civilizatório. A via civilizatória tem três instâncias: a política (prática), a arte (sentir) e o compromisso coletivo (governança). São perspectivas que se interpenetram. E cooperam para tornar o mundo mais vivível. Pois vida, para quem sabe, é coisa linda de viver. Como a viveu Manuel Bandeira:

“Quando a indesejada das gentes chegar, talvez eu tenha medo. Talvez sorria. Ou diga: Alô, iniludível ! O meu dia foi bom, pode a noite descer. A noite com seus sortilégios. Encontrará lavrado o campo, casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”.