Revolucionários da tomada do 22º Batalhão de Caçadores – 22 BC – João Pessoa, 1930.

 

“Os velhos ruminam o pretérito, os moços antecipam e devoram o futuro”.  Talvez esta máxima do Marquês de Maricá explique o fato de que eu, ao transpor o umbral do 15º Regimento de Infantaria – 15 RI, em João Pessoa, para prestar serviço militar, tenha ficado indiferente ao drama que ali se passara trinta anos antes, quando aquela unidade do nosso Exército se chamava 22º Batalhão de Caçadores – 22 BC. Ali perderam a vida quatro oficiais fiéis ao Governo Federal e quatro praças, dentre os revoltosos que tomaram de assalto o quartel, compondo um grupo de voluntários civis sob o comando do tenente Agildo Barata. Agora, que se cumprem noventa anos do ocorrido na noite do dia 3 para 4 de outubro de 1930, na capital paraibana, é tempo de “ruminar” o passado, provocar reflexões, e dele extrair lições de vida.

A história da Revolução de 30 tem sido bem narrada por vários dos seus participantes e observadores: Agildo Barata, Juarez Távora, Juraci Magalhães, Barbosa Lima Sobrinho, Hélio Silva, José Joffily, até o velho José Américo de Almeida, em seu “O Ano do Nego”.  Não pretendo aqui recontá-la, apenas ressaltar alguns dos seus aspectos e complementar informações.  Trata-se de acontecimento marcante para a Paraíba, palco do episódio sangrento que impregnou os seus coevos até a terceira geração. “Liberais” e “perrepistas” ainda se distinguem, embora não mais se hostilizem, como em passado recente.  Alguns ressentimentos e rancores pessoais, no entanto, remanescem.  Por isso, sinto-me no dever de informar que me incluo no time dos “liberais”: sou neto do secretário das finanças do presidente Joao Pessoa e filho do secretário da agricultura do governador José Américo, vinte anos depois.

Podemos começar com uma glosa aos numerosos relatos da Revolução.  Talvez ninguém tenha ainda satisfatoriamente enfatizado a profundidade, a extensão e a abrangência daquele movimento.  Arrisco-me a afirmar que a história brasileira não registra, e dificilmente registrará episódio semelhante: o anseio de mudança da Velha República oligárquica envolvia o operariado nascente, as classes médias urbanas, os empresários e até mesmo proprietários rurais. Celso Furtado, em suas memórias, dá conta do intenso clamor popular provocado pela morte do presidente João Pessoa, que ele presenciou, criança, nas ruas da nossa capital.  Juarez Távora, comandante militar do movimento no Norte e Nordeste, enquanto esteve escondido por aqui, abrigou-se em casas de empresários.  E João Alberto conta que, ao retornar clandestino do exílio na Argentina, após a aventura da Coluna Prestes, para rever a família no interior do Rio Grande, tendo sido identificado por um estancieiro, foi bem acolhido e protegido.  E até uma escolta de peões de sua confiança ele lhe proporcionou, para entrar à noite em sua cidade.

Essa disseminação abrangente do anseio revolucionário explica o fato de que os jovens convocados por Agildo Barata para o assalto ao quartel do 22 BC tenham provindo das “melhores famílias” paraibanas, na expressão um tanto piegas de Juarez Távora.  Agildo os nomeia em seu livro, embora omita involuntariamente alguns dos recrutados: Artur Sobreira, Antenor Navarro, Basileu Gomes, José de Borja Peregrino, Francisco Cícero, Odon Bezerra e Caetano Júlio, este último  afrodescendente, de origem modesta, o primeiro negro a chegar ao posto de coronel da Polícia Militar do seu Estado. Artur Sobreira, do próprio punho, completou a lista: Ernesto Silveira, Cipriano Galvão, José Mariz, e mais Antônio Pontes e o preto José de Lima, estes também de estrato popular.  Eram, inicialmente, cerca de vinte civis, mal embrulhados em fardas do Exército, mas boa parte, ao defrontar-se com uma inesperada resistência, bateu em retirada.  Seu comandante, generosamente, preferiu omitir seus nomes no relato.

Há também adendos a fazer quanto às vítimas.  Do lado do Governo todos são conhecidos: o general Lavanère Wanderley e os tenentes Paulo Lobo, Raul Reis e Sílvio da Silveira.  Não há menção, no entanto, às baixas entre os revoltosos: um cabo e três soldados.  Agildo desculpa-se por não recordar seus nomes, que, salvo engano deste que ora escreve, permanecem até hoje em completo esquecimento. Dúvidas existem ainda quanto à morte do general, que teria resistido à prisão.

Houve quem comentasse que o general, ao tentar resistir, teria sido abatido pelo comandante da operação. Mas não é o que este conta, em suas memórias. Segundo o memorialista, após sair do alojamento, simulando rendição, o general o alvejou, com um revólver calibre 32, atingindo um dos atacantes que revidou, ferindo-o. Em seguida, foi levado pelos combatentes civis Artur Sobreira e José Mariz para o Corpo da Guarda, sendo depois conduzido de automóvel para o hospital, onde veio a falecer.  Os médicos que o atenderam foram, no primeiro momento, Dr. João Medeiros, e depois Dr. Ávila Lins, que o operou. (Observações de Artur Sobreira, nesta parte final). Pela coragem e sinceridade demonstrados pelo tenente Agildo, combatente obstinado em três movimentos revolucionários – 1930,1932 e 1935 – ao assumir plenamente as responsabilidades de todos os seus atos, nos três casos, não me parece haver razão para pôr em dúvida o seu depoimento.

Conquistado o quartel do 22 BC, logo foram despachadas tropas mistas do Exército e da Polícia Militar para tomar o poder nas cidades de Fortaleza, Natal e Recife, recheadas de voluntários, na capital e ao longo do caminho. O historiador José Joffily foi um deles, desde os primeiros momentos, aos dezessete anos de idade.  E assim a Paraíba, “pequenina e heroica”, assumiu o protagonismo no movimento revolucionário que, com todos os percalços em sua evolução, acabou por mudar a face do país, sepultando as práticas viciosas da velha república oligárquica.

Mas cabe uma reflexão final, motivo destas reminiscências.  Devemos uma reverência aos heróis obscuros que expuseram a vida pela causa.  Talvez nem tivessem perfeita consciência de sua motivação, e tenham sido apenas fiéis aos seus chefes – caso dos três motoristas sobreviventes, integrados ao grupo de patrícios que invadiram o quartel, e dos quatro praças que morreram anônimos. Mas lealdade e fidelidade, até o limite do sacrifício, são também pontos de mérito. Como no caso dos dois sargentos integrantes dos “dezoito de Copacabana”, que só abandonaram a luta quando já estavam sem munição, e autorizados pelo seu comandante, Siqueira Campos, tendo tido a sorte de sobreviver, para contar a história. A estes heróis singelos e desafortunados de 1930, nossa comovida homenagem, ainda que tardia.

 

  • Para Joaquim Inácio Brito, pesquisador da história recente da minha terra, cujas observações sobre este texto agradeço.