A última Ceia

A última Ceia

Marcel, o narrador de “Em busca do tempo perdido”, nos conta que uma amiga da sua família, ao cruzar na rua com o pai dele, vira a cara para o outro lado, aparentemente sem motivo para gesto tão grosseiro. Que teria se passado? Essa amiga tornara-se uma fervorosa partidária da inocência do capitão Alfred Dreyfus (1859–1935), do Exército francês, que fora acusado de espionagem em favor dos alemães, em 1894. Já o pai de Marcel, antidreyfusista, defendia a condenação do oficial judeu. Posteriormente, descobriu-se que Dreyfus fora alvo não só de um erro judiciário como de uma perseguição antissemita. Como se sabe, o caso Dreyfus rachou a França ao meio por, pelo menos, uma dúzia de anos e terminou com a absolvição do desditoso militar.

Com polarizações políticas, dois tipos de amizade ficam em jogo: o que resiste às divergências políticas e o que a elas sucumbe, fazendo ir pelo ralo anos de afeto, convivência e boas recordações. Vale a pena? O próprio Marcel Proust (1871–1922), que, em sua juventude, foi um defensor apaixonado de Dreyfus, vai ponderar, em seu imortal romance, que “As paixões políticas são como as outras, não duram. Novas gerações vêm que já não as compreendem. A própria geração que passou por elas muda, experimenta paixões políticas que, não sendo exatamente decalcadas das precedentes, lhe fazem reabilitar uma parte dos excluídos, por haver mudado a causa do exclusivismo” (“A prisioneira”).

Diz-se com frequência que o Natal é uma festa familiar. Aí está a famosa ceia, que confirma essa intimidade e que, em tese, e só em tese, seria apaziguadora, não fosse ela ameaçada pelo álcool, que solta a língua e outras cascavéis, e pela política com “p” pequeno para parodiar Joaquim Nabuco (1849–1910). Tenhamos cuidado: a ceia de Natal pode ser tudo o que a polarização precisa para mandar às favas a conhecida mansidão do aniversariante e a desejada paz familiar. Do presépio a uma diabólica presepada, o passo é curto. Oremos aos santos anjos: querubins, serafins, tronos, virtudes, potestades, arcanjos… Mas quem ainda acredita em anjos? O humorista Aparício Torelli (o famoso Barão de Itararé,1895–1971) já nos alertava que “Deus é até um bom sujeito, os anjos é que são uns salafrários”. 

A ceia tem que se passar numa espécie de modo neutro, modo, aliás, sempre acossado por uma danada de coceira na língua. Há que contritamente se pensar, cada qual com seus botões: “Olha, é só hoje que isso dá pra passar” ou “Pelo santo se beija o altar”. Como Proust fazia, convém ser gentil, sentar-se em todas as mesas, dar atenção aos diversos convivas…

Polarização? Sim. Por isso, tem sempre alguém que está uma pilha!!! Uma palavra em falso pode pôr tudo a perder. Por exemplo: “golpe”. Evitem-se as expressões: golpe de sorte, golpe de ar, golpe baixo… Melhor também dispensar termos como “capitão” e outras patentes inflamáveis; “joias” (evitem esse presente!). Se falarem no vindouro mês de janeiro, contornem o dia 8. Até mesmo um personagem histórico tão remoto como Alexandre Magno, ou o Grande, pode causar dores de cabeça. Evitem “gozo”, que pode ser ouvida como “Bozo”… E mesmo que um marginal invada a ceia para roubar todos, todas, todes e tudo, não falem nunca a palavra “ladrão”!

Em suma, tempos polarizados, como Proust bem sugere, não são para amadores! O fato é que não vale mesmo a pena perder amigos e parentes por causa de paixão política. Numa confraternização, de um grupo a outro, a Verdade, alegre como um peru que escapou à própria ceia de Natal, subitamente poderá saltar, unindo corações e mentes e pondo de pé a golpeada Esperança. 

Feliz Natal!