Em 1968, num 13 de dezembro como hoje, foi assinado mais um Ato Inconstitucional, agora o AI 5, rasgando o resto de direitos que ainda sobreviviam entre nós. Assim começou a mais dura fase da ditadura de 1964. Como a meninada de hoje não tem a menor ideia de como foram aqueles anos decidi celebrar ao contrário, essa data, relatando episódios curiosos (entre tantos) que então vivi. Devo estar ficando mesmo velho, ao querer lembrar do passado que passou.
Tudo começou nesse mesmo ano aziago de 1968, tinha 19 anos e estudava (terceiro ano) na Faculdade de Direito da Católica. Uma instituição privada. Só que nunca paguei nada, por lá, em razão de Bolsa de Estudos concedida, pela universidade, por conta das notas. Nesse ano fui eleito presidente do Diretório Acadêmico. E nada era mais importante, naquele tempo, que ir em busca, como no título de Boucovsky, da “Dor lancinante da Liberdade”. Mesmo sabendo que pedir Democracia, naqueles negros tempos, tinha seus riscos. Nem de longe se comparando com a moleza de agora.
Fui à Itália (onde meu pai tinha grandes amigos juristas) e França (Sorbonne), pensando continuar o curso por lá. Que, segundo informavam, os militares não permitiriam que continuasse por aqui. Sem sucesso, nessas tentativas de novo lugar para estudar. Ano seguinte, 1969, comecei a receber dezenas de cartas diárias do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Não era, nunca fui, mas isso os membros dessa espécie de KKK brasileira não queriam nem saber. Bastava ser a favor da Democracia e, automaticamente, para eles o cidadão era comunista. E queriam seu sangue.
Tinha um amigo, Cândido, que sofreu atentado em frente ao Museu do Estado. O pessoal da Rural Willy verde de X-9 (todos que viveram aqueles tempos lembram dela) chegou atirando. Cândido, sem ter como reagir, ficou por trás de coluna, se protegendo das balas, em um posto de gasolina que fica bem na frente. Até quando correu para o mangue, na esperança de escapar, e levou um tiro nas costas que cortou sua medula. Não morreu, ainda bem, mas ficou hemiplégico.
Decidi que algo assim não aconteceria comigo. Iria reagir, com certeza. Razão pela qual passei a andar armado. Um problema, que punha o revólver nas costas, segurado pelo cinturão, o que era incômodo. Sobretudo quando estava sentado nas carteiras, que arranhava o local. E o engraçado é que não sei atirar. Nunca dei um tiro, na vida. Não tenho revólver, nunca tive, nem lembro de onde esse veio.
Certa manhã, na Faculdade, um grupo que sabia ter gente que era do PCC me viu. E o que parecia ser chefe, por ironia um amigo, disse: “Zé Paulo, mesmo, está com medo”. E todos começaram a rir.
Achei que era demais. Fui até o grupo, encostei o cano do revólver na testa desse amigo e disse “Medo nenhum. Só peço uma coisa. Se um dia for minha vez, por favor venha na frente. Que o primeiro tiro vou dar em você”. Ele se ajoelhou no chão, dizendo “por favor, por favor”, quase chorando, fui embora e nunca mais tive problemas por lá.
Quando voltava para casa, de noite, por vezes havia pessoas estranhas circulando em volta do edifício. Nesses casos continuava, sem parar, e ficava no carro, andando, até bem tarde. E dormia só quando iam embora.
Sabendo disso tio João Suassuna (irmão de Ariano e casado com uma irmã de meu pai, Raquel), emprestou uma chave. De apartamento que tinha na Rua dos Navegantes, imediações do Corta Jaca. Quando esse pessoal aparecia de noite, ia dormir lá. Não era operação simples.
Primeiro, deixava o carro longe, para que ninguém tivesse ideia de onde estaria. O apartamento ficava no quinto andar. E era preciso que ninguém soubesse de minha presença, no edifício. O que despertaria suspeitas. Por isso, preferia subir pelas escadas; que, no elevador, poderia cruzar com algum morador. O apartamento era quente mas não podia abrir as janelas, para entrar o ar; que, então, alguém vendo saberia haver gente no local.
Mas calor não era o maior problema. Quando usava o banheiro, não podia dar descarga. Que vizinhos iriam saber, pelo barulho. O que deixava o local com um cheiro pouco agradável, fazer o quê? Para dormir, outros problemas. Que, no local, não havia móvel nenhum. Deitava no chão, claro. Sem travesseiro, o que era péssimo. Foi quando aprendi a usar os sapatos, para isso. Punha um por cima do outro, com as solas para baixo, e funcionava. Dormia bem. Dia seguinte, dava descarga e saia logo, novamente pelas escadas, até pegar o carro.
Depois, tudo seguiu seu roteiro. Fui mesmo proibido de estudar, no Brasil, pelos militares. Mais tarde, também de ensinar; pude fazer isso apenas em 1984, às vésperas da redemocratização, no Mestrado da Faculdade de Direito do Recife (uma Universidade Federal). Mas, logo depois de ser cassado, ganhei Bolsa de Estudos, com tudo pago, para Harvard. Maior universidade do mundo. “Malhas que o Império tece”, palavras de Pessoa (O menino de sua mãe) para definir o Destino. E acabou tudo bem.
No primeiro 7 de setembro depois do fim da ditadura, em 1985, eu era ministro da Justiça. Apenas 16 anos depois, do ponto de vista do tempo histórico quase nada. Estava ao lado do presidente Sarney, no palanque, para o desfile. E os militares batiam continências, para nós. Foi um dia mágico, já contei isso antes, em que me reconciliei com o país, com a bandeira, com o hino, com aqueles homens marchando, sobretudo quando vieram os ex-combatentes. Chorei muito tempo. E compreendi que o bom futuro se constrói olhando só para a frente.
Paro por aqui. Até porque isso que relatei é nada, ante amigos que foram torturados ou mortos. E conto essa historinha só para que os mais jovens saibam o valor da Democracia. Camões, no seu Os Lusíadas, falava no Velho do Restelo “com saber d’experiências feito”. Assim se diga, pois, que contei o que vivi. Como na conhecida quadrinha dos interiores nordestinos,
O caso eu conto
Como o caso foi
Porque homem é homem
E boi é boi.
Delícia a historia do nosso Zé Paulo.