Momento de fazer balanço? Na imprensa nacional e internacional, sim. De países e da economia mundial, sim, sobretudo pelo “The Economist”, o melhor semanário do mundo. Também de empresas. No plano individual, parece que, mais que balanços, ainda existe o tal costume (ou fuga?) das resoluções de Ano Novo, em que o balanço não fica explícito. Ora, se tais resoluções valem alguma coisa devem ser tomadas imediatamente e não esperar o 1º de janeiro.
Não tenho “resoluções de Ano Novo”. Nada do tipo consumir uma castanha do Pará por dia, uma banana por dia, ir dormir mais cedo, etc. Mas ando pensando seriamente que devo usar menos do meu tempo no Facebook, vou fazer uma análise custo-benefício de tal atividade. Zuckerberg deixa livres e soltos no Facebook comentários tão brutais e absurdos que gente mais ou menos “normal” nem imagina que existem. Se é que existe “normal”, pois sei de psicanalista que diz que isso de “normal” não existe.
Gosto da ideia de que é tempo de balanços. Nacionais, internacionais e individuais. De rever a história. E de recordações. Também gosto do fetiche inócuo de receber o novo ano de branco como se pudesse trazer paz.
É tempo de memória? Não. Não é tempo de memória. Nem para octogenários como eu. Ao menos se tomamos com precisão o significado da palavra memória. Recordações não são memória do acontecido de fato e com todo detalhe. A não ser que você tenha feito um diário, esteja examinando documentação recolhida sobre o que de fato aconteceu.
Há muitos anos vi, num romance de Thomas Brussig, uma frase que lembro de quando em vez, porque gosto da ideia, nem estou certa de que a entendi precisamente. Aí vai minha tradução: “Pessoas felizes têm memória ruim, mas são ricas suas recordações.” Não tentei saber de outra tradução, com ou sem IA ou coisa que o valha. Desconfio que sairia um caso de “perdido na tradução”, mais ainda do que sinto que se perde na minha tradução. No original: “Glückliche Menschen haben ein schlechtes Gedächtnis und reiche Erinnerungen.“
Penso que em alemão fica muito mais forte a diferença entre o que traduzimos como memória (Gedächtnis), e o que traduzimos como recordação (Errinnerung). Fato é que me considero pessoa feliz, sempre tive sorte. Por enquanto. E muita coisa já esqueci. Acho que é assim, benevolente, minha relação com meu passado. Pretensão? E reconheço que o que a gente tem não são memórias, no sentido de lembrar exatamente do acontecido e de como a gente sentiu esse acontecido.
Memória do acontecido, registro do que de fato aconteceu, só a pesquisa histórica pode obter, se procurar ser imparcial. Ou a escavação de antropólogos e pesquisadores da genética. O que a gente tem são recordações, que já passaram por uma imensidão de filtros que foram se criando ao longo do tempo, e que não terão nem exatidão nem imparcialidade mesmo que se queira, mesmo que a pessoa se esforce por “neutralidade”. Já dizia meu querido professor de filosofia da Fenefi no Rio, Álvaro Vieira Pinto: “o ponto de vista de Sirius não existe”.
Pior ainda: em diferentes épocas a recordação de um mesmo fato passado pode mudar. A maneira como eu recordava minha vida de 1963 no Rio de Janeiro (às vésperas do golpe civil-militar que não previmos) era uma em 1974, quando eu estudava em Cambridge, Inglaterra, e outra quando publiquei na “Será?” “Sessenta anos este mês”. Nos meus tempos de Europa nem pensava no passado, a necessidade de absorver tudo o que havia de tão novo não deixava espaço ou tempo para recordações, exceto aquelas lembranças necessárias na prática para absorver os eventos do presente. Pois que o presente a gente enfrenta sempre usando as experiências vividas anteriormente.
Algum contato com literatura alemã eu tenho, esparsa, por poucos autores, então pode ser que seja a ousadia da ignorância que me leva a considerar Thomas Brussig um dos grandes da literatura alemã, que se situa na passagem do século XX para o XXI. “Wie es leuchtet” não é ainda romance clássico porque saiu a público em 2004, e Brussig é um autor deste século. Fiz uma resenha de “Wie es leuchtet” (Fischer Taschenbuch Verlag 2006) na antiga revista Política Externa (vol 23 no 3, 2015). Será caricatura dizer que é sobre a queda do Muro de Berlim, mas não teria existido sem a queda do Muro de Berlim.
A frase que me intriga, e que está em outro livro de Brussig, não aparece assim do nada. Vem despois de algo como uma advertência sobre “memórias”: “Quem quer realmente guardar o que aconteceu, não pode se entregar às recordações. A recordação humana é um procedimento por demais bondoso para aprisionar o que passou: ela é o contrário do que apresenta ser. Porque a recordação pode mais, muito mais: ela consegue teimosamente o milagre de selar paz com o passado, quando se evapora toda a raiva contida e o véu suave da nostalgia cobre tudo o que já foi sentido como agudo e cortante.
Pessoas felizes têm memória ruim, mas são ricas suas recordações.” (Thomas Brussig “Am kürzeren Ende der Sonnenallee”, Fischer Taschenbuch 2001, p. 156-157, tradução minha.)
Talvez, afinal de contas e a rigor, tudo não expresse apenas o fato de que Thomas Brussig, que parece ser feliz, tem boas recordações de nascer e se tornar adulto na Alemanha Oriental, antes da queda do Muro de Berlim, assim como de todo o sofrido processo de reunificação. Se não é feliz, ao menos consegue enxergar um aspecto engraçado nos acontecimentos que relata. No Brasil foi traduzido apenas um livro dele “O charuto apagado de Churchill” (L&PM Porto Alegre 2005, tradução de Marcelo Backes). Não sei se é sobre uma real ironia da história, ou apenas uma recordação galhofeira de Brussig sobre a demarcação da fronteira entre Alemanha Ocidental e Oriental. Ou só invenção mesmo.
Não dá para falar de memória, lembrança, recordação e ignorar o que disse Norberto Bobbio em O Tempo da Memória: De Senectute e outros escritos autobiográficos (Ed. Campus 1997. Prefácio de Celso Lafer). Verdade que a memória aparece no título da tradução brasileira, enquanto o título original de 1996 era simplesmente De Senectute. O mesmo que o de um livro de Cícero sobre velhice e juventude 44 a.C. A mudança das ideias sobre velhice, e da própria velhice, desde então, é analisada por Bobbio na primeira parte, não sem alguma ironia quando parafraseia um provérbio de Erasmo sobre guerra e diz: “Quem louva a velhice nunca a teve diante dos olhos”. Mas o livro é bem mais que isso, pois na segunda parte aparecem suas ideias sobre política e cultura, sobre democracia e fascismo, sobre poder, sobre violência, sobre diferenças entre o alcance do conhecimento do analista que não participa da ação política e os limites de como pode fazer uso do conhecimento aquele que é militante.
Quase digo no meu entusiasmo – mas é exagero – que O Tempo da Memória já vale pelo Prefácio de Celso Lafer à edição brasileira, “A Autoridade de Norberto Bobbio”. Um prefácio que aumenta minha admiração por Norberto Bobbio e por Celso Lafer, mais um intelectual que pensou muito sobre o conhecimento acadêmico e o conhecimento que pode ou não pode ser usado na ação política.
Cheguei em Norberto Bobbio pela política, pela dúvida se “esquerda” e “direita” ainda servem como categorias de análise, se os conceitos não estavam de tal modo embaralhados que se confundiam. Fui ler de Bobbio “Direita e Esquerda”. No original de 1994, Destra e sinistra, esclareceu de modo convincente em que sentido a díada ainda valia. Mas continuo vendo, no mundo digital sobretudo, declarações que expressam tanto ódio, tanta violência, tanta confusão mental, tanto caos, que realmente não importa uma identificação à esquerda ou à direita. E nas ditaduras de hoje qual o sentido de uma classificação à direita ou esquerda? Quem sabe vale mais um outro fio condutor das reflexões de Bobbio, apontado por Celso Lafer no Prefácio de O Tempo da Memória: “no labirinto da convivência coletiva, o único salto qualitativo, possível, mas não necessário, é a passagem do reino da violência para o da não violência”.
Helga, estou fora de casa, sem acesso ao Word, e escrever com dois dedinhos limita os pensamentos. Só quero anotar, com regozijo, que gosto dessa Helga Hoffmann escritora que vem desabrochando de uns tempos pra cá, que entrou no espírito do tempo (vide Emmanuel Carrère) e mistura e manda suas recordações pessoais junto com fatos da história e dos historiadores.