Eleição de Tancredo Neves

Eleição de Tancredo Neves

Quarenta anos após, persiste uma visão preconceituosa  sobre a forma como o Brasil deixou a ditadura para trás, com a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, recebendo 480 votos contra 180 dados a Paulo Maluf e 26 abstenções. 

Isso talvez explique o espantoso esquecimento da mídia e do governo sobre o tema. 

O patrono da redemocratização brasileira – título conferido a Tancredo pelo Congresso Nacional em 2021 – foi o reconhecimento à sua longa trajetória ao lado da democracia. Assim ele se comportou no episódio da morte de Getúlio Vargas, na crise de 1961, no golpe de 1964 e nos 21 anos de regime militar. Tancredo foi a ponte para o Brasil fazer a travessia da escuridão da ditadura para a luz do dia da democracia, 

Ainda hoje, setores da intelectualidade e da esquerda brasileira subestimam o complexo  e longo caminho percorrido pelo Brasil até chegar àquela eleição e menosprezam o significado da transição pela via do Colégio Eleitoral indireto, reduzindo-a a uma transação entre as elites. Seria, assim mais um episódio histórico parecido com a passagem da monarquia para a República, ou com o ministério da Conciliação do Marquês do Paraná, de 1853, no qual Saquaremas (conservadores) e Luzias (liberais) se acertaram.

Esse era o entendimento de Lula, como registrou o livro de Elio Gaspari “A Ditadura Acabada”: “Ao saber que Tancredo Neves emergia como o grande negociador de uma transição, Lula atacou a ideia: “A proposta de Tancredo não é de governo de transição coisa nenhuma. É uma proposta de transação”. 

Coerente com essa visão, o PT se recusou a participar do Colégio Eleitoral Indireto, expulsando três parlamentares que votaram em Tancredo – Airton Soares, Beth Mendes e José Eudes.

Trinta e dois anos depois, no 8º Congresso do PT, Lula ainda defendia  o mesmo ponto de vista: “Esse partido não teve medo de ser massacrado pela imprensa em 1985, quando tínhamos somente oito deputados e decidimos não ir ao Colégio Eleitoral. Expulsamos três deputados. Acharam que a gente ia acabar e não acabou. Quem acabou foram esses deputados”. Esqueceu-se de dizer que esses deputados degolados contribuíram para o fim da ditadura. 

A posição de Lula refletia uma divergência de fundo entre as forças heterogêneas  que estiveram no palanque das Diretas Já. Após  a derrota da Emenda Dante Oliveira, liberais, democratas e parte da esquerda, como o PCB, defendiam derrotar o regime militar dentro das regras estabelecidas, atraindo para seu campo,os dissidentes da ditadura. Já o PT e um reduzido grupo de parlamentares autointitulados de “autênticos” do PMDB, se  recusavam participar do Colégio Eleitoral, apostando na continuidade da pressão das ruas.

As manifestações realizadas logo após a derrota das Diretas Já no Congresso Nacional nem de longe se aproximaram dos atos de antes. Por várias razões, entre elas,  o fato de que as manifestações anteriores só adquiriram  caráter multitudinário quando foram assumidas por governadores de oposição, particularmente por Franco Montoro (SP), Leonel Brizola (RJ), José Richa (Pa) e Tancredo Neves (MG).

A estratégia defendida por Lula não encontrava eco nas ruas.  Caso galvanizasse a maioria dos parlamentares de oposição – daria uma sobrevida  de mais seis anos ao regime militar, com a possível vitória de Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. A história veio a provar o acerto de quem apostou em derrotar a ditadura dentro das regras estabelecidas por ela mesma.

Desde o golpe militar em 1964, havia visões excludentes sobre qual caminho a oposição deveria seguir. Parte da esquerda brasileira entendia não haver mais espaço para a via institucional, optando pelo  caminho armado para a derrubada do regime. A negação do espaço institucional se dava também com a pregação do voto nulo, com base no argumento segundo o qual O MDB e a Arena “eram farinhas do mesmo saco.” Esse caminho foi derrotado política e militarmente pela ditadura e é falsa a narrativa de que ele seria o braço armado da resistência democrática.

A estratégia vitoriosa foi a do acúmulo democrático, por meio  da combinação da luta institucional com a pressão das massas e da sociedade civil. Capitaneado pelos liberais, o MDB foi o grande estuário de uma frente democrática, na qual, ao final, foi engrossada por dissidentes  do regime militar. O acúmulo de forças se deu muitas vezes de forma lenta, mas também em momentos de saltos, como o da anticandidatura de Ulysses Guimarães, a vitória do MDB em 16 Estados em 1974,  na eleição de nove governadores de oposição em 1982. A tais episódios se somaram a luta pela anistia, as greves operárias, as manifestações estudantis, a mobilização da sociedade civil e suas organizações como OAB, ABI, CNBB, SBPC, entre outras.

Esgotada a campanha das Diretas Já, a candidatura de Tancredo se tornou o novo patamar para a superação da ditadura. Tal estratégia só foi viável dada às particularidades do país e do próprio regime brasileiro, diferente das outras ditaduras sul-americanas. No caso brasileiro, a ditadura, mesmo no seu momento mais feroz, como no governo Médici, manteve um mínimo de institucionalidade, que possibilitou a atuação nos estreitos marcos legais e ampliá-los, conforme a sociedade civil e as forças democráticas ficavam mais fortes.

O regime militar não foi derrubado, no sentido estrito da palavra, foi superada pela via da pactuação. Isso ficou claro nas palavras do discurso preparado por Tancredo para sua posse:

“Não celebramos, hoje, uma vitória política. Esta solenidade não é a do júbilo de uma facção que tenha submetido a outra, mas festa da conciliação nacional, em torno de um programa político amplo, destinado a abrir novo e fecundo tempo ao nosso país”. Sua mensagem era a de conciliação, de união de um povo em torno de um mesmo propósito:  

“Não vamos nos dispersar. Continuemos reunidos como na praça pública , com a mesma emoção, a mesma  dignidade e  decisão”. 

A união cívica pregada por Tancredo hoje está esgarçada. O país se dispersou, por falta de um projeto de nação e por uma polarização estéril. Retomar o fio da meada do discurso que não pode proferir por ter morrido antes de sua posse é a melhor maneira de fazer jus ao seu legado, responsável por propiciar ao país o mais longo período democrático desde o advento da República.