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Torcida
Imaginem a apresentação de uma peça de teatro sem plateia. Se for transmitida pela televisão, não será teatro. Alcançará um público até maior, mas será uma telenovela, não uma apresentação teatral com a emoção que provoca diretamente nos espectadores reunidos na sala do teatro e nos atores que recebem de volta a energia dos espectadores. E o futebol? O espetáculo do futebol é a combinação da arte dos atletas no gramado com a força emocional da torcida que, diferentemente dos espectadores de uma peça de teatro, são participantes ativos do jogo, incentivando, criticando, xingando, gritando e pulando. Se as peças têm um roteiro que se repete em todo espetáculo, cada partida de futebol é única e se trata de uma disputa entre dois clubes que contam com adesões, simpatias e paixões, criando identidades e gerando rivalidades. O futebol é uma representação lúdica da sociedade e dos conflitos e disputas entre grupos de identidade simbólica com os diferentes clubes. A torcida, espectadores da partida de futebol, leva para o estádio uma poderosa carga emocional que descarrega nos gritos, exaltações, alegrias e tristezas, no desenrolar do espetáculo. Funcionando como uma catarse, as tensões deveriam se encerrar ao final do jogo com a dispersão do coletivo (torcida) e a volta dos cidadãos para casa. Não tem sido sempre assim, infelizmente.
Tudo isso para dizer que um jogo de futebol sem torcida (até mesmo com torcida única), dois times correndo no campo sob o silêncio das arquibancadas, não é o espetáculo futebolístico que encanta e enriquece a cultura brasileira. Impede a interação dos torcedores com o seu time, a emoção da participação do espetáculo, e retira dos jogadores a energia que vem das arquibancadas. Bom, e a violência? A violência é caso de polícia e deve ser tratada como tal, embora tenha causas sociais mais profundas. Os clubes não podem ser punidos pela barbaridade de grupo de torcedores que utilizam as cores do time, embora tenham responsabilidade de inibir a organização de torcidas violentas. E os atletas e torcedores que, de fato, querem participar do espetáculo, não podem ser castigados por conta de um grupo de marginais que pretende mesmo impedir a beleza do futebol.
As barbaridades praticadas pelas torcidas organizadas do Sport e do Santa Cruz no sábado passado, desordem pública e agressões de fanáticos, constituem um fenômeno social que extrapola o espetáculo futebolístico. É certo que o torcedor é uma entidade passional que projeta suas emoções no futebol, mas a paixão futebolística não pode levar à violência física contra os adversários ou mesmo, como ocorre nos fracassos, contra os jogadores dos seus próprios times. As barbaridades das torcidas organizadas têm raízes mais profundas e para além da simpatia a um clube de futebol. Provavelmente, refletem as frustrações e os ressentimentos sociais de jovens sem perspectivas que se juntam, formando uma identidade poderosa numa mobilização de massa, para despejar seu ódio à sociedade, sua pulsão destrutiva, sobre a torcida adversária. Como dizia Gustave Le Bom, citado por Paulo Gustavo em artigo desta Revista Será (Le Bom e as Redes Sociais), o “indivíduo na multidão adquire exclusivamente, por causa do número, um sentimento de poder invencível, que lhe permite ceder a instintos que, sozinho, teria forçosamente refreado”.
Em princípio, o fato de alguns torcedores se reunirem para acompanhar os jogos do seu time não constitui um risco para a segurança do espetáculo, embora misture a paixão futebolística com o fenômeno de massa. Mas isto não significa que todas as torcidas organizadas sejam violentas. A brutalidade das torcidas organizadas, como o ataque ao ônibus do Fortaleza no ano passado e a batalha campal do último sábado, é o produto de um ódio acumulado entre duas torcidas organizadas formadas por marginais, alguns dos seus membros processados e condenados por diferentes crimes. Estes nem sequer estão interessados no espetáculo do futebol, mobilizando seus instintos violentos para o confronto com as torcidas adversárias.
Como lidar com um fenômeno tão grave e complexo, que envolve um dos mais belos espetáculos do Brasil, mas que vai muito além do futebol? As causas da violência são muito mais profundas e só podem ser equacionadas com políticas sociais que moderem a vulnerabilidade e a marginalidades dos jovens. O que leva tempo e demanda mais que polícia na rua e nos estádios. Mas, de imediato, as torcidas organizadas têm que ser monitoradas e, a partir de um monitoramento rigoroso, dar um tratamento diferenciado de acordo com as eventuais ameaças que representem à segurança dos estádios e à paz social da cidade. Os grupos de bandidos devem ser desarticulados, impedidos de se reunir e se mobilizar, devem ser banidos dos estádios e os seus líderes obrigados a se apresentar nas delegacias nos dias de jogo, além dos que devem ser presos quando cometam crime. As medidas acordadas pelas autoridades e os clubes depois da batalha do sábado vão ajudar a conter a violência nos estádios, mas não serão suficientes para garantir a segurança e a paz nas ruas. E que voltem as torcidas aos estádios, enquanto a polícia reforça a inteligência e atua de forma preventiva e repressiva contra as organizações criminosas vestidas de torcedores. O espetáculo deve continuar.
É isso, Mestre Sérgio.
Agradecendo a menção a nosso artigo, também vejo por esse prisma o embate dessas falsas torcidas.
A torcida única, embora possa evitar o pior, é um atestado de falência das forças de segurança e, por extensão, de nossa sociedade.
Abraço