Proust

Proust

Por volta dos seus dez anos, o menino Marcel Proust (1871–1922) teve uma crise de asma que assombrou a família e o deixou no limiar da morte. Como se sabe, a doença foi a companheira de toda uma vida. O pó e o pólen passaram a terríveis inimigos. Aos poucos, Proust foi trocando o dia pela noite, pois a vida diurna poderia literalmente sufocá-lo. Em seu livro “A dificuldade de ser”, Jean Cocteau (1889–1963) reproduz o pavor de Proust diante de qualquer sinal alergênico: “Caro Jean, ele me perguntava, você não pegou na mão de uma senhora que teria tocada uma rosa? — Não, Marcel. — Você tem certeza?”. 

Dispensável dizer que a asma proustiana se tornou um tema literário e um lugar-comum de vários estudiosos. Pelo menos um desses autores, o pneumologista e acadêmico François-Bernard Michel (1936), afirma que, na prática, Proust entendia tanto de sua doença quanto os melhores médicos chamados a tratá-lo.

Tão legendário quanto sua asma, o quarto de Proust faz parte da mitologia do escritor, tanto é assim que, em Paris, o Museu Carnavalet exibe uma réplica do aposento. O quarto era sua sala de visita, seu hábitat, onde, entravam um ou outro amigo, não sem receberem uma pátina de frio. No já citado livro, Cocteau nos traz imagens fortes do fantástico cômodo e do seu hoje famoso habitante. Ao contrário do que se pode ver no museu parisiense, não havia, evidentemente, qualquer arrumação. Forrado de uma cortiça acusticamente protetora (já que seu morador também era hipersensível aos sons), eternamente fechado, o cômodo continha “[…] uma mesa coberta de frascos, um teatrofone (aparelho que permite escutar alguns teatros), uma pilha de cadernos de escola e, como sobre os outros móveis, uma camada de poeira que não se espanava, o lustre coberto com lustrina, a mesa de ébano onde, na sombra, se empilham as fotografias [Proust era fascinado por fotos] de cocotes, duquesas, duques e valetes de grande casa, a lareira com espelhos apagada, capas, capas e aquela poeira, e aquele odor antiasma, odor de sepulcro, todo aquele quarto de Jules Verne era um Nautilus lotado de aparelhos de precisão […] e onde se tornava fatal ver aparecer o capitão Nemo em pessoa: Marcel Proust, magro, exangue, com a barba de Carnot morto”.

Cocteau prossegue: “Proust, na sua cama, nos recebe vestido com colarinho e luvas, engravatado, aterrorizado com a possibilidade de um perfume, de um vento, de uma janela entreaberta, de um raio de sol”. Desse quarto sinistro, onde reinava uma “desordem pestilenta”, o enfermiço autor só saía à noite, quando o silêncio baixava sobre a cidade, e seu inimigo mortal, o pó, jazia em estado cataléptico. Raras vezes saía durante o dia.

A evocação de Cocteau se completa ao dizer que Proust lia, em algumas noites, vários trechos de “No caminho de Swann”. “Lia qualquer trecho, se enganava de página, se atropelava, recomeçava, se interrompia para nos explicar que um sinal com o chapéu do primeiro capítulo encontraria o seu sentido no último volume, e ele gargalhava tampando a boca com sua mão enluvada […]” e dizia: “É bobo demais, é muito bobo”. Desculpava-se e recomeçava. Cocteau não o diz, mas suspeito de que o bom Marcel fingia, ironizava, testando os amigos…

Eis o quarto de Proust longe de sua organizada réplica do Museu Carnavalet. Aquela “caverna” do Boulevard Haussmann era, a rigor, a forja do mais longo e mais colossal romance já escrito, onde, para falar com Gilberto Freyre, “[…] se desce a criptas a que ninguém antes dele desceu”. Escrito em cima de uma cama, entre severas crises de asma, “Em busca do tempo perdido” nem por isso deixa de ser uma obra luminosa e “enciclopédica” (Italo Calvino), resgatada à morte e ao esquecimento, pois seu autor defrontara-se, como ele mesmo o confessa no último volume, “O tempo redescoberto”, com esta constatação existencial: “Eu tinha a certeza de que meu cérebro constituía uma rica zona de mineração, com jazidas preciosas, extensas e várias. Mas teria tempo de explorá-las? Era a única pessoa capaz de fazê-lo. Por dois motivos: com minha morte, não desapareceria só o mineiro conhecedor exclusivo dos minérios, mas também as próprias minas”. A imagem casa-se à perfeição com o sentido verticalizante e de profundidade do seu grande livro.

A metáfora de Jean Cocteau, citada mais acima, confirma essa vocação das profundezas. Sim, Proust é um capitão Nemo que nos conduz, com “aparelhos de precisão”, por 20 mil léguas submarinas. Aos críticos, sempre cabe voltar a esses “aparelhos” de que Proust dotou sua obra-prima e com os quais criou um novo tempo literário; aos leitores em geral, basta o encantamento da longa e deslumbrante viagem.