Ernst e Clara Viebig - Wikimedia Commons

Ernst e Clara Viebig – Wikimedia Commons

1 – No fim de março, levei um grande susto. No dia do seu aniversário, em tese, você quer estar livre para atender telefonemas, teclar agradecimentos e manter-se alerta a uma visita ocasional – cuja graça reside justamente em não ser anunciada. Em hipótese alguma concebe-se que o aniversariante passe a data com o nariz enfiado num livro, driblando o interfone e adiando a hora de fazer a barba. Mas foi o que me aconteceu no último dia 29. Se você gosta de uma boa história, talvez deva continuar lendo esta.

2 – Na véspera, quando brindava com prosecco do Piemonte à chegada da data, ganhei um livro sóbrio, lindamente editado, cujo título já dava o que pensar – A Sinfonia Inacabada da Minha Vida. De quebra, um subtítulo que, mais do que provocar, convidava a uma folheada de reconhecimento, àquele virar de páginas em que acionamos mais o olho crítico do que o benevolente, à procura de um pretexto para adiar a leitura ou de um critério que nos sussurre se ele vai ou não para a cabeceira.

3 – Acontece que o livro autobiográfico de Ernst Viebig – sim, o subtítulo é Reminiscências do Filho Judeu de uma Mãe Famosa – se revelou um total fura-fila. Na verdade, comecei a lê-lo de imediato, mesmerizado pela escrita envolvente e, convenhamos, pela tradução do alemão de Kristina Michahelles. Aos olhos de um brasileiro que fala e se delicia com o idioma de Goethe, ela resplandece com todas as cores e dá vida à complexidade sintática – o que esconde e revela belezas, apesar da sonoridade intimidadora.

4 – Por onde começar? Sendo o livro de edição limitada, é justo que avance um tantinho para contar uma história que poucos lerão em papel ou na tela. Tudo começa com Clara Viebig, mãe de Ernst, uma das mais aclamadas escritoras alemãs da virada do século passado. Aos 36 anos, Clara se casa com um editor de prestígio, 4 anos mais jovem, de nome Fritz Theodor Cohn. Ela é luterana. Ele, judeu. Nascido em 1897, Ernst Viebig viria a exaurir todas as reservas de amor já dispensadas a um filho.

5 – Assim, no quadro da vida abastada que levava em Berlim, o menino viu, em marcha acelerada, as mudanças do mundo. Passeou de bonde elétrico com o pai em visita à avó postiça, uma judia de Odessa que o avô desposara depois na viuvez. A iluminação já não era a gás. O tratamento dentário passara a ser indolor. O raio-X fora inventado e havia tráfego de carros em Zehlendorf e Charlottenburg. A mãe, Clara, nascida em Trier, terra de Karl Marx, crescera em Düsseldorf. Ernst estava a gosto no mundo na capital.

6 – “Meu pai, o homem mais bondoso que conheci na vida, era colérico.” Pobre homem! Cheio de amor pelo filho, mimando-o com viagens de montanhismo ao Tirol e passeios à Inglaterra, poucas coisas devem tê-lo desesperado tanto quanto os arroubos de Ernst, que ora o impeliam a se aliar ao esforço da Primeira Guerra – mais pelo gosto da aventura do que por fervor patriótico -, ora a desfrutar da opulência proporcionada pela editora da família e pelos afagos de uma babá sensual, que lhe propiciou uma iniciação precoce.

7 – Condecorado duplamente com a Cruz de Ferro ao cabo de sua participação na guerra – tanto no front francês como no russo -, a herança judaica paterna lhe pesaria dolorosamente, impedindo que seu trabalho de compositor ganhasse a projeção a que estava fadado, sufocado pelo Nazismo. Autorizado a usar apenas o sobrenome materno – omitindo o Cohn -, Ernst viria a ser proscrito do circuito cultural por Goebbels, apesar da interferência de Herman Görieng em pessoa e do aval entusiasmado do maestro Furtwängler, seu fã.

8 – Mas como podem nomes que pertencem à História – para o pior e para o melhor – permear a vida de um berlinense da virada do século? Para Ernst, que acompanhou ao piano o violinista Albert Einstein – de talento musical apenas relativo -, o impossível é um verbete minúsculo no seu bojudo glossário. Na prosa bela e escorreita, cintila a evidência de uma educação refinada e de uma vida que só fazia sentido nos extremos. Especialmente quando se tratava de viver para sua arte e, selbstverständlich, para as mulheres.

9 – Ponto nevrálgico dessa autobiografia descoberta no fim dos anos 1950, apenas dois anos antes de morrer, Ernst era, por assim dizer, inimputável. Se o momento pedia casamento, ele se casava. Se os ventos mudassem, ele se separava. A volúpia falava mais alto. A moldura amorosa era um meio para satisfazer um impulso, para safar-se de um momento ingrato, para ganhar ou para perder as graças paternas e, por que não, para forjar alianças com companhias de ópera, regentes, músicos, diretores artísticos, políticos e amigos.

10 – Tanto pior se a penúria financeira se abatesse sobre ele e o cônjuge eventual. Isso ocorria por mais que o pai tecesse delicadas redes de proteção, mesmo quando estavam de relações cortadas, o que não era raro. O receituário dele para suavizar a ruína era, no mínimo, heterodoxo. Hospedava-se no très chic Baur au Lac, de Zurique, e ali pedia o melhor champanhe. Para Ernst, o hedonista, o que contava era o dia que vivia. Num povo de planejadores obsessivos, ele via o futuro com o fatalismo de um beduíno.

11 – Ainda em meados dos anos 1930, Ernst chegou ao Brasil. Em São Paulo, esteve à frente da Livraria Transatlântica que fez sucesso junto ao público teuto-brasileiro. Com a Segunda Guerra, o braço longo do nazismo o castigou à distância e ele fechou o empreendimento. Com a mudança para o Rio de Janeiro, abre-se a quadra final dos seus 25 anos no Brasil, terra a que não se afeiçoou em especial. Voltar ao Heimatland sempre esteve nos seus planos. Morreu na Baviera, às vésperas dos anos 1960 – portanto, jovem.

12 – Ernst formou duas novas famílias aqui – de que se saiba. Ainda assim, não foi especialmente devotado aos filhos que teve com a esposa que viera da Alemanha, a paciente e abnegada Irmgart Viebig. Fiel ao script de uma geração, quando se viu sozinho, depois da morte da penúltima amante, aproximou-se da ex-esposa com quem teve o casal de filhos Susanne e Reinhart. A centenária Susanne é mãe de Pedro Bial que, como eu, também nasceu em 29 de março de 1958. Foi dele que ganhei o livro de presente.

13 – Em alemão, Die unvollendete Symphonie meines Lebens está disponível no Kindle. Na contracapa, o neto Pedro – que jamais vou ver com os mesmos olhos doravante -, vaticina com acerto. “Não é uma história de vida que interesse apenas a parentes. É uma descrição de rara nitidez de um mundo que acabou. Como seu contemporâneo Stefan Zweig, Ernst nos dá a ver o mundo que viu. Em texto envolvente, com traços proustianos, oferece largas pistas para quem pretende decifrar os enigmas de nossa era.”

14 – Obrigado ao meu Irmão Nas Estrelas pelo presente.