
STF Plenário- Wikimedia Commons
Recife. Já de volta. Lisboa, que para o amigo Fernando Pessoa era só “uma eterna verdade vazia e perfeita” (Lisbon Revisited), agora é passado. Ir é bom, mas voltar é melhor. Muito melhor. E começo essa primeira coluna no retorno lembrando, por sua importância institucional, a cassação da Deputada Federal Carla Zambelli pelo TRE de São Paulo. Na mesma linha dura do Supremo. Alinhados, os dois. Algo preocupante pela carga ideológica que traz.
Fundamento dessa medida, segundo a Folha de São Paulo, foi não apenas o uso de uma arma (para o qual, aliás, tinha licença); mas, especialmente, o “abuso na liberdade de expressão”. Não, amigo leitor, você não está lendo errado. Falar, nos tempos atuais, passou a ser algo perigoso. Arriscado. De quem não tem juízo. Sobretudo se for contra o sistema. Sigamos no exame do caso.
Fundamental, numa Democracia, é o direito que todos temos (ou deveríamos ter) de dizer o que quisermos. Afinal, de que adianta uma consciência livre se não podemos falar?, eis a questão. Obedecendo aos limites fixados na lei, claro. Respondendo, sempre, nos casos de Calúnia, Injúria e Difamação ? arts. 138, 139 e 140 do Código Penal.
Com relação a parlamentares, esse direito foi sempre amplíssimo. Em regra, que formalmente, no essencial, não vem mudando. Basta ver nossa Constituição de 1967, que dizia: Art. 34. “Os Deputados e Senadores são invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos”.
Também a seguinte, de 1969: Art. 32. “Os Deputados e Senadores são invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos, salvo no caso de crime contra a honra”. Ambas, nos sombrios anos do autoritarismo de 1964.
Chegando a nossa atual Constituição de 1988, já na Redemocratização, que define o tema com quase as mesmas palavras: Art. 53. “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
Conformando esse espectro das Imunidades Parlamentares, os estudantes de Direito Constitucional aprendem que elas, usando palavras de Georges Burdeau (Traité de science politique), são “privilégios que garantem o livre exercício do mandato”. E correspondem a uma proteção contra atos praticados no cumprimento específico de suas funções (“irresponsabilidade”) ou mesmo estranhos às atividades parlamentares, como crimes comuns (“inviolabilidade”).
Aprendem também que essas imunidades não são muito diferentes, de um país a outro ? em alguns poucos exemplos Itália (art. 68 da Constituição), França (art. 26), Espanha (art. 71), Japão (art. 51). Na Inglaterra, o mesmo direito que tem o parlamentar de dizer o que quiser sem ser processado, tem também qualquer cidadão, desde que em espaços públicos e com os pés fora do chão (como se estivesse num púlpito) ? devendo por isso falar sobre bancos de praça, caixotes ou mesmo prosaicos lenços. Já vi no Hyde Park, em Londres, um cidadão pulando enquanto, no ar, falava (muito) mal da rainha. Num de seus cantos, por lá, funciona um Speakers Corner (esquina dos oradores) onde, todos os domingos pela manhã, pessoas comuns (e alguns excêntricos) se reúnem para falar de assuntos diversos, sobretudo religiosos e políticos. Com total liberdade.
Aprendem mais os estudantes que essa regra tem variações, por vezes melhor definindo responsabilidades; como na Alemanha (art. 46, único país que admite limitação no direito de falar), onde os parlamentares respondem sempre que ocorra “injúria infamante”; ou acentuando o corporativismo, como no caso do Brasil (art. 53), onde o parlamentar pode ser preso apenas em flagrante de crime inafiançável ou em processo instaurado com autorização do poder legislativo (uma regra pouco usada, nos outros países). Em todos os casos sendo reconhecida doutrinariamente, essa imunidade, como uma garantia da própria representação política.
Sabemos hoje que a proteção amplíssima dos parlamentares, na versão que agora dá à Constituição o Supremo, passa a ter limites. Não tem limites, pela Constituição. Mas tem, segundo o Supremo. O de não se poder fazer “críticas que ameacem a Democracia”. Mas quem define quais seriam essas críticas ou de que ameaças se trata?, esse o problema.
Já vivemos isso, antes. Na Ditadura Militar de 1964 as garantias formais para o Parlamento, como vimos, eram as mesmas de agora. Só que nada se podia dizer que ameaçasse a “Segurança Nacional”. Nem falar de censura ou torturas. Muito menos de mortos e desaparecidos políticos. E quem definia isso?, meus senhores. Os próprios militares, claro. O sistema. O direito era absoluto, na Constituição; e seletivo, nas mãos do tal sistema.
A história se repete mesmo, volto a dizer. E não só como farsa. Provando que mais razão tinha o florentino (Maquiavel, O príncipe) que o prussiano (Marx, 18 Brumário). Antes, a liberdade para falar era só um mito, hoje também. Antes era a “Segurança Nacional”, hoje a “Democracia”. Antes, o que os militares quisessem, hoje o que os ministros do Supremo querem (ou concedem).
A Deputada Carla Zambeli sustentou que nosso sistema de votação não é seguro. Esse o seu excesso, segundo o TRE. E a ironia é que não mentiu. Porque, em todas as Democracias importantes do primeiro mundo, urnas são auditáveis. A partir de 1990 foram sendo introduzidos, em todos os países, com um mesmo padrão ? o DRE (Direct Recording Eletronic); sendo admitidas, no Brasil, só em 1996. Mas, a partir de 2015, quase todos os países do planeta passaram a ter urnas auditáveis. Enquanto nós, não.
O próprio Congresso determinou isso, em 2015, com a Lei 13.165 ? estabelecendo a auditagem das urnas. Só para ver o Supremo dizer que a Lei não valia, para ele. Pela razão, quase inacreditável, de que “permitiria a identificação do votante”. Um sistema que não permite isso em nenhum lugar do planeta, mas que poderia se dar no Brasil. Como?, senhores.
Sem contar que, nas Democracias que se prezam, quem faz leis é o Poder Legislativo; enquanto, no Brasil, valem só as leis reconhecidas ou criadas pelo Supremo. Conformando um novo Poder Legislativo, por fora da Constituição.
Carla Zambelli (946.244 votos) é (ou era) deputada. E não lhe valeu a imunidade conferida pela Constituição. Pior é não ser a única sofrendo punição. No caso dela, é o TRE. Na mesma linha, agora pelo próprio Supremo, o Deputado Federal Daniel Silveira está preso por fazer críticas aos ministros da Casa. E o Deputado Federal Marcel van Hattem sendo processado por dizer que um agente da Polícia Federal mentiu. Tudo funcionando como uma ameaça do tipo “cuidado, senhores; é mais prudente, para sua saúde, ficar calado”. Perdão, amigo leitor, mas isso não é Democracia.
Clemenceau dizia “A Democracia? Vocês sabem o que é? O poder dos piolhos de comerem os leões”. (Pequena filosofia de bolso). Só que, no mundo real, ganham sempre os mais fortes. Os poderosos do sistema. Vamos ter que dizer, nesse estranho tempo em que vivemos, apenas o que os leões da Justiça Eleitoral e do Supremo permitirem. Sem críticas, claro. Em resumo, é isso.
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