Berlim 1945

Berlim 1945

Não preciso reafirmar aqui minha posição sobre Stalin e muito menos sobre a guerra na Ucrânia. Os que me conhecem e me acompanham há mais tempos devem ter lido vários posts meus, condenando Stalin e a invasão da Ucrânia pela Rússia do autocrata Putin.

O escopo dessa nota é outro: manifestar minha discordância com os que criticam a presença de Lula nas comemorações em Moscou dos 80 anos da derrota do nazismo, como fez Denis Rosenfield, em artigo publicado no Estado de São Paulo desta segunda-feira.  O autor debruça-se sobre o acordo Molotov-Ribbentrop, deixando, contudo. de registrar os antecedentes deste acordo, que deixaram Stalin sem saída, a não ser assinar o acordo com Hitler. Uma voz insuspeita – Churchill – sustentou esse ponto de vista em sua biografia.

A Segunda Guerra Mundial foi o episódio histórico mais importante do Século Vinte. Por isso seu fim é comemorado em  duas datas. Os países ocidentais, que compuseram o bloco dos aliados, comemora no dia 8 de maio e os soviéticos no dia 9 maio.  

Diante de um fato histórico tão relevante não cabe entrar na lógica mesquinha da polarização, ou da oposição sangrenta  – e despolitizada  – a Lula. Putin, claro,  tinha objetivo de capitalizar o ato de Moscou, para  legitimar a invasão da Ucrânia. Lula, claro, tem uma posição equivocada sobre a invasão da Ucrânia, nivelando o país agressor ao agredido, no caso a Ucrânia. Mas este é um tema para outro artigo, que pode e deve ser feito. No presente momento, o foco são os fatos que antecederam à Segunda Guerra, inclusive   ser enfrentado de forma séria o quanto a política de apaziguamento em relação a Hitler adotada pelas democracias ocidentais  contribuiu, não só para a  ascensão de Hitler, como para a eclosão da Segunda Guerra. Isso requer um debate descontaminado de viés ideológico.  

Por viés ideológico chamo o ranço do anticomunismo que ainda permeia muitas mentes. Esse anticomunismo é tão gritante que  alguns posts atribuem ao Acordo Molotov-Ribbentrop, que dividiu a Polônia entre a Alemanha e  a União Soviética, a responsabilidade pelo início da Segunda Guerra Mundial. A conclusão é lógica, como insinua Rosenfield:  a  culpa pela eclosão do maior conflito militar de toda a História deve ser repartida entre Stalin e Hitler, em decorrência do acordo Molotov-Ribbentrop. Chamberlain, com sua política desastrosa de concessões aos nazistas, é poupado e absolvido  por seus erros. O maniqueísmo leva a isso.

Na verdade, a Segunda Guerra Mundial já tinha se iniciado antes desse acordo entre Hitler e Stalin.  Em  março de 1938 acontece o episódio conhecido como Anschluss,  com a  anexação da Aústria pela Alemanha de Hitler. Em setembro de 1938, por meio do Acordo de Munique,  o Reino Unido  e a França concordam em ceder os Sudetos  a Hitler. Detalhe importante: os Tchecos sequer participaram do Acordo. Apenas foram comunicados   pelos Aliados de que os Sudetos passariam a pertencer à Alemanha nazista. Neville Chamberlain, então Primeiro Ministro  Britânico, volta  de Londres acenando um papel para a multidão, declarando que com o Tratado de Munique tinha conseguido “a paz para nossos tempos.”  Recebeu de Churchill uma resposta histórica:

“Entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra, e terás a guerra”. 

 Essa guerra iria estourar em final de agosto de 1939, quando Hitler invadiu a Polônia.  Seria chamada de “Guerra de Mentirinha” porque até a invasão da França por Hitler, em 1940,  franceses e ingleses ficaram em suas trincheiras sem trocar um só tiro com as tropas de Hitler. 

Churchill estava certo. Em 15 de março  de 1939 Hitler  se  apossou de toda a Tchecoslováquia, estabelecendo um governo fantoche na Eslováquia e invadindo militarmente as regiões  Boêmia  a Morávia. Com isto,  violou  o próprio  Acordo de Munique, assinado um ano antes. A “paz para nossos tempos” foi reduzida a pó pelas tropas hitleristas. 

Os países aliados nada fizeram. A política de apaziguamento que tinha levado a Inglaterra e a França a ignorar que  a Alemanha estava se rearmando desde que Hitler chegou ao poder continuou. Fechava-se os olhos às constantes violações do Tratado de Versalhes assinado após o fim da Primeira Guerra Mundial. Os aliados preferiram brincar de avestruz, quando Hitler, em março de 1936, remilitarizou a Renânia. Restou  ainda a omissão vergonhosa das democracias ocidentais, em relação à Guerra Civil  Espanhola, escudando-se em uma postura de “neutralidade”, quando Hitler e Mussolini intervinham militarmente no conflito armado espanhol. Esse episódio foi  uma espécie de ensaio geral da Segunda Guerra, cujo desfecho levou o fascismo a se instalar na Espanha, com a vitória de Franco.

Vamos agora ao Acordo Molotov- Ribbentrop e seus antecedentes. Em 1935 a União Soviética assinou um pacto  com a Tchecoslováquia que previa  ajuda militar dos soviéticos aos tchecos,  desde que a França agisse no mesmo sentido   Quando  Hitler  ameaçou  tomar os Sudetos,  a URSS   se dispôs a cumprir a cláusula e intervir no conflito em defesa da Tchecoslováquia. Mas  isto dependia de a Romênia e a Polônia concordarem que  tropas soviéticas passarem por seu território, pois a União Soviética não tinha fronteiras com a Tchecoslováquia.  Já a França se recusou a agir diante das ameaças de Hitler, e resolveu ser parceira de Chamberlain na política de apaziguamento com Hitler. Esse vexame levaria a Dunquerque.  Já a  Polônia recusou peremptoriamente que   o exército soviético passasse por seu corredor com o objetivo de auxiliar os tchecos. 

Bem antes da assinatura do Acordo Molotov-Ribbentrop,  a União Soviética propôs ao Reino Unido e à França  a assinatura de uma acordo de defesa mútua, como resposta aos intentos expansionistas e militaristas de Hitler. Várias tentativas foram frustradas. Isto está muito bem relatado em um livro de Maisky, então embaixador soviético  na Grã Bretanha.   

Às vésperas  do acordo entre Hitler e Stalin, os aliados, finalmente, mandaram, em agosto de 1939, uma delegação a União Soviética, composta por quadros técnicos que não tinham autonomia  para assinar acordos vinculantes. A Delegação era liderada  pelo Almirante Reginald Drax (Reino Unido) e pelo General Joseph Doumenc (França). Ambos os enviados não tinham poderes plenos para assinar qualquer tratado vinculante — eram basicamente representantes técnicos que dependiam de instruções constantes de seus governos. As negociações foram lentas, burocráticas e marcadas por ambiguidade nas promessas e falta de garantias claras, especialmente sobre a questão de a Polônia permitir o trânsito do Exército Vermelho, o que era essencial para qualquer ação militar soviética contra a Alemanha.

Enquanto isso, a Alemanha enviou uma delegação de alto nível, liderada por Joachim von Ribbentrop, ministro das Relações Exteriores de Hitler, com plenos poderes para negociar e assinar um pacto. A União Soviética interpretou a postura britânica e francesa como pouco séria ou até deliberadamente obstrutiva. Isso acelerou a aproximação com a Alemanha, resultando na assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop em 23 de agosto de 1939 — um pacto de não agressão que incluía cláusulas secretas de divisão da Polônia e das áreas de influência na Europa Oriental, especialmente nos países bálticos.

Sobre esses episódios, recorro a um anticomunista convicto  e uma das maiores personalidades da Segunda Guerra Mundial. Vejamos como Churchill, em seu livro A Segunda Guerra Mundial, escreveu:” Não há dúvida de que o fracasso da Grã-Bretanha e da França em agir em conjunto com a União Soviética foi um fator importante na decisão de Stalin de concluir um pacto com Hitler. “Ele via o acordo germano-soviético como uma tragédia diplomática evitável, fruto da política de apaziguamento e da falta de visão estratégica das potências ocidentais. Ele também via com ceticismo o Acordo de Munique (1938), que excluiu a União Soviética das negociações sobre a Tchecoslováquia.

Não se trata de avalizar o Acordo Molotov-Ribbentrop, com a consequente divisão da Polônia entre a Alemanha de Hitler e a União Soviética, mas entender os fatos históricos que levaram a sua assinatura.

Não se pode reinterpretar a história para responsabilizar a União Soviética pela Segunda Guerra Mundial. Uma leitura honesta levará, inevitavelmente, a reconhecer o papel épico  e a dívida de gratidão que a humanidade tem com a União Soviética, em decorrência de seu papel na Segunda Guerra Mundial.

A Frente Leste foi a principal da Segunda Guerra Mundial. Só ignora isso quem se informou sobre a Segunda Guerra por meio de filmes americanos. Em termos de números de divisões, de batalhas sangrentas, de perdas de vidas, o  principal teatro de operações esteve no Leste Europeu, particularmente na União Soviética. Foi ela que libertou os principais  campos de concentração. A famosa segunda frente só seria aberta em 1944, depois de ter sido sucessivamente adiada pela Inglaterra e os Estados Unidos. 

Churchill  enxergou bem mais longe do que outras lideranças do mundo ocidental. Percebeu o erro estratégico cometido por Hitler de levar a guerra em duas frentes – a ocidental e a do leste europeu. Erro da mesma dimensão cometeria, seis meses depois, o Japão com seu ataque a Pearl Harbour. O Eixo, em seis meses, trouxe para a arena da guerra dois inimigos que desequilibrariam  a correlação de forças: A União Soviética e os Estados Unidos. A derrota de Hitler viria quase quatro anos depois. 

É aqui que entra a genialidade de Churchill. No mesmo dia da invasão da União Soviética – 22 junho de 1941- pronuncia na BBC um discurso histórico:   Ninguém foi um oponente mais constante do comunismo do que eu nos últimos 25 anos. Não retirarei nenhuma palavra que disse sobre isso. Mas tudo isso empalidece diante do espetáculo que agora se desenrola.”

“ O perigo russo é, portanto, nosso perigo, e o perigo dos Estados Unidos, assim como a causa de qualquer russo lutando por seu lar e sua pátria é a causa de homens e povos livres em todas as partes do mundo.” (…) Temos apenas um objetivo e um único e irrevogável propósito. Estamos resolvidos a destruir Hitler e todos os vestígios do regime nazista.” … Segue-se, portanto, que daremos toda a ajuda que pudermos à Rússia e ao povo russo.” 

Churchill era um anticomunista convicto, mas não era um idiota ideologizado, como o são muitos que nos tempos atuais  poluem as redes sociais destilando anticomunismo em estrato puro.

Sim, a ajuda dos países ocidentais foi importantíssima para a União Soviética resistir e derrotar  Hitler. Mas a vitória foi conseguida com o sangue de 25 milhões de soviéticos. Eles escreveram páginas épicas. A blitzkrieger foi derrotada às portas de Moscou. Os leningradenses resistiram a um cerco  de 900 dias. Stalingrado foi a batalha que inverteu a correlação de forças, com as tropas de Hitler iniciando sua derrocada. E a batalha de Kursk é considerada, até hoje, a batalha que envolveu o maior número de tanques e blindados. 

Não foi pouca a contribuição da União Soviética – e por extensão  da Rússia – para a vitória dos aliados e a derrota do nazismo.  

Reconhecer isso não significa defender  o regime de ditadura do partido único – chaga de que já me livrei há décadas – nem defender o    déspota Putin, com seu plano de reconstruir o “Grande Império Russo” dos tempos  dos czares.  Muito menos implica em passar o pano nos crimes de Stalin. Aliás, se algum mérito Stalin teve foi o de unir todos os povos da Uniao Soviética em uma guerra  de defesa da pátria, e não do modelo do socialismo implantado em 1917. 

Encerro   com uma referência ao livro que estou relendo, Vida e Destino – considerado por muitos como o “Guerra e Paz” da Segunda Guerra Mundial.  Seu autor, Vassili  Grossman, foi o maior  correspondente da Segunda Guerra Mundial. Seu livro, escrito no começo dos anos 50, só foi publicado na União Soviética em 1989, nos tempos de Gorbatchov. Motivo de sua proibição: o então ideólogo da “Pátria-Mãe do Socialismo”, Suslov, dizia que suas verdades só poderiam ser publicadas “daqui a 200 ou 300  anos”.  Vida e Destino  é, antes de tudo, um libelo contra ideologias totalitárias. Uma denúncia contundente do nazismo e do stalinismo.

Por que me refiro ao livro? Lá para as tantas, Grossman fala dos “idiotas ideologizados”. O Brasil e  as redes sociais estão cheios de idiotas movidos a ideologia.