
Papa Francisco
Nesses últimos dias, quase todos nós, católicos ou não, viramos vaticanistas de carteirinha. A cenografia e os ritos seculares seguiram nos impressionando. A ordem unida e rubra dos cardeais nos fascinou. Uma chaminé singela atraiu os olhares do mundo. Corações estremeceram. Finalmente, uma abundante fumaça branca anunciou Leão XIV, o qual, já despontando como leão, tem muito para quem rugir num mundo com líderes como Netanyahu, Erdogan, Maduro, Putin, Trump, Milei e Órban.
Por uma espécie de magia dos conclaves, modelada pela tradição e pela fé, um dos cardeais, até então “eminência”, transforma-se de imediato em “santidade”, o que prova a importante função dos pronomes na vida religiosa do catolicismo! Investido dessa “santidade”, não entrará logo no reino dos céus, enfrentará um purgatório que atende por diversos nomes: “Cúria Romana”, “Finanças em Crise”, “Abusos Sexuais na Igreja”, etc. Terá um país e uma instituição multinacional para dirigir. O serviço é árduo, espinhosíssimo como a coroa que puseram no Crucificado.
O cardeal brasileiro Dom Raymundo Damasceno expressou algo de que não temos muita consciência: “Ninguém quer ser papa”. Digamos, brincando, que muitos cardeais fogem do papado como o diabo da cruz! Querer ser papa, malgrado a santidade que virá a galope, também seria encarar o calvário de um complexo governo, se não for, digamos, uma espécie de pecado de contraditória vaidade. Até Bergoglio, já se noticiou, não queria ser papa.
Mesmo o chamado “Papa bom”, João XXIII (1881–1963), viu-se em apuros. Por alguns dias, recém-eleito, contava ele, perdeu o sono. Até que uma certa hora falou para si próprio: “João, não se leve tão a sério!”. E desse dia em diante, como dizia, passou a dormir muito bem. Fica aqui a receita para os insones. Se não dormirmos bem e nos levarmos muito a sério, não seremos bons papas, nem bons profissionais, nem bons pais e mães de família. Sem dormir bem, não teremos bom humor como o possuía o dito João e o recém-falecido papa.
Francisco, com semelhante humor, também não se levava tão a sério, pelo menos não a ponto de perder a simplicidade que abraçou. Agora, com sua morte, talvez o vejamos em sua verdadeira dimensão. Tornou-se maior do que imaginávamos. Não! Era de fato grande. Como escreveu Nabuco, “Não se fica grande por dar pulos. Não podemos parecer grandes, senão o sendo.” Malgrado o acerto das palavras nabuquianas, estamos sempre cercados de gente que vive aos pulos…
Francisco não deu pulos. Imprimiu ao papado não só os gestos habituais que se esperam de um papa, mas algo, ousamos dizer à falta de melhor palavra, que podemos chamar de “hamletiano” e que se manifestou em várias frases, a exemplo da talvez mais célebre e significativa delas: “Quem sou eu para julgar?”. Essa frase tão humilde quanto inimaginável na boca de um papa certamente provocou um tsunâmi de perplexidade no coração dos conservadores. “Se o papa diz isso, terão pensado, ele leva à dúvida destruidora e a implacáveis incertezas. Como pode governar a Barca de Pedro?”. Enfim, como pode um hamletiano governar? Mas não é Hamlet que puxa, ainda que hesitante, o fio da verdade?
Leitor de Dostoiévski e de seu conterrâneo Jorge Luis Borges, atento à melhor literatura, Francisco, à semelhança de Riobaldo, do “Grande Sertão: Veredas”, tornou-se um líder sem deixar de ser um hamletiano. Agora morto, bem que podem ser aplicadas a ele estas palavras de João Guimarães Rosa, aliás um dos últimos papas de nossas pobres Letras, quando se referiu a João Neves da Fontoura, seu antecessor na Academia Brasileira de Letras: “De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias”.
Excelente. Bonito.
Obrigado, Sergio!
Cordial abraço.