Biblioteca Oliveira Lima

Biblioteca Oliveira Lima

Em seu túmulo em Washington D.C., o grande brasileiro de Pernambuco Manuel de Oliveira Lima (1867–1928) quis apenas que constasse um epitáfio tão simples quanto eloquente: “Aqui jaz um amigo dos livros”. Se a morte, como escreveu Maurício de Nassau, “é a última vaidade dos homens”, nosso ilustre conterrâneo chamou a si, como Jorge Luis Borges faria um dia, não a vaidade de autor, mas a bela vaidade de leitor e, mais que de leitor, de amigo visceral dos livros.

Com alguma graça e talvez muita verdade, Gilberto Freyre chamou Oliveira Lima, em livro a ele dedicado, de “Dom Quixote Gordo” (título que hoje, malgrado o ótimo achado da imagem, seria politicamente incorreto). Nessa obra, entre ensaio e perfil biográfico, Freyre, que na juventude muito se valeu da convivência com o diplomata e historiador, aponta que ele foi, a um só tempo, “singular e plural”, além de dotado de “sutilezas de espírito”, “de tendência a atitudes quixotescas”… Daí talvez ter tido vários desafetos. Não obstante o incontornável ensaio freyriano, o que agora nos traz a Oliveira Lima é a obra “Aqui vive um amigo dos livros: 100 anos da Biblioteca Oliveira Lima”, publicada pela Edusp em 2024, de autoria de Ricardo Souza de Carvalho, crítico literário e docente da Universidade de São Paulo.

Como se sabe, o autor de “Dom João VI no Brasil” doou, em 1916, à Universidade Católica da América, em Washington D.C., sua biblioteca temática de 40 mil livros. Oficialmente, naquela instituição, a Biblioteca  só foi inaugurada em 2 de maio de 1924.  Não apenas livros foram doados, mas objetos de arte, quadros, documentos diversos e farta correspondência, um acervo que foi obra de toda uma vida dedicada não só à História e às Letras, como igualmente à diplomacia, ao jornalismo e ao País. Uma biblioteca em que não faltam livros raros que dizem respeito ao Brasil e à cultura ibérica, com algumas de suas obras remontando ao século XVI. 

Uma das particularidades da Biblioteca Oliveira Lima, como assinala o professor Souza de Carvalho,  é que ela nunca esteve no Brasil. Não por acaso, Josué Montello, no inspirado artigo “No centenário de Oliveira Lima”, citado no livro, a ela se refere como “a grande livraria exilada”, que sofre uma “orfandade em terra alheia”. À época faltavam recursos, bom acondicionamento dos livros e técnicos qualificados. De fato, desde que se tornara pública e “americana”, em 1916, a famosa Biblioteca nunca teve uma merecida estabilidade técnica e funcional. Todavia, enquanto viveu, o autor pernambucano foi o seu curador, conforme cláusula por ele estabelecida.

Na primeira parte de seu ensaio, Souza de Carvalho nos leva a perceber como, desde a juventude, Oliveira Lima foi um amigo dos livros e, por extensão, um amigo da Literatura e da História. Seu radar de colecionador se alimentava de uma vasta correspondência com grupos de letrados, de livreiros e instituições de ensino. A propósito, uma das suas várias singularidades, como apontou Gilberto Freyre, era a de ser formado em Letras, e não em Direito como era comum à altura. Letras, diga-se, frequentadas e adquiridas em Lisboa, cidade onde começou a formar sua valiosa coleção.

Numa segunda parte, o autor mostra como Oliveira Lima, justamente por ser diplomata, conheceu importantes bibliotecas do mundo e como concebeu que seu acervo pessoal se tornasse, em Washington D.C.,  onde foi secretário da Legação Brasileira, uma Biblioteca “de Pesquisa” [realce nosso] da Catholic University of America, instituição da qual “teve uma excelente impressão”. O explodir da Primeira Guerra Mundial, justamente quando o historiador servia em Londres, “[…] precipitou a mudança de continente [da Biblioteca]”. Souza de Carvalho nos observa que o casal Flora-Oliveira Lima era tido “[,,,] como germanófilo, principalmente devido a uma série de artigos, ‘Ecos da Guerra’ [que o diplomata escrevia], para o ‘Estado de São Paulo’”. A polícia inglesa os vigiava.

Na terceira e última parte, o livro nos descreve a consolidação da Biblioteca em terras americanas, destacando o esforço da viúva, Flora (1863–1940), uma mulher de alto nível intelectual, à frente do seu tempo, que dirigiu, após a morte do marido, a Biblioteca Oliveira Lima, bem como os trabalhos de Manoel Cardozo, historiador açoriano formado em Stanford, que ficou à frente da coleção por mais de 30 anos, e de Maria Ângela Leal, bibliotecária contratada em 1996, que foi dedicada curadora assistente, liderando o “projeto de catalogação de parte substancial dos livros e panfletos luso-brasileiros” e tendo apoiado importantes trabalhos para a bibliografia do grande brasileiro.

O livro do professor Ricardo Souza de Carvalho, aliás enriquecido por diversas fotografias, bem nos faz imaginar as angústias de Oliveira Lima para preservar o seu imenso legado, uma fonte que o grande brasileiro soube preparar para o futuro e que já deu de beber a ilustres pesquisadores, a exemplo de Gilberto Freyre, Carolina Nabuco, José Honório Rodrigues, Walnice Nogueira Galvão e Sérgio Paulo Rouanet.

Longa vida à Biblioteca Oliveira Lima!