Proust

Proust

Talvez seja exagerado dizer, mas, com um grão de sal, a França poderá sempre se lembrar de que, ao lado do célebre 14 de julho, há um 10 de julho, que, a seu modo, também é data gloriosa. Refiro-me ao nascimento de Marcel Proust. Por isso, escrevo este artigo, que é apenas um grão, não de sal, mas da admiração mundial que se tem pelo escritor nascido em 1871. É nos subúrbios dessa admiração que apresento este modesto texto, cuja veleidade não é falar apenas para os “convertidos”, mas, em especial, para aqueles que, sem o saberem, têm fome e sede de Marcel Proust.

Os dias que precederam o nascimento do escritor foram historicamente marcados pelos episódios da Comuna de Paris. O conturbado evento foi a primeira, trágica e malograda experiência de um governo comunista, quando a cidade não era mais que uma praça de guerra. Em seu livro “Proust perdu et retrouvé” (“Proust perdido e reencontrado”), o crítico francês Georges Cattaui (1896–1974) lembra que o consagrado médico Adrien Proust, dias antes do nascimento do futuro filho ilustre, fora ferido pela bala de um insurrecto, escapando por pouco de ser morto.

Temerosos, pai e mãe do futuro autor de “Em busca do tempo perdido” não perderam tempo: decidiram que Madame Proust se instalasse em Auteil, nos arredores da cidade, em casa de um tio desta, na rua La Fontaine, onde o menino nasceria. Em “Proust”, Jean-Yves Tadié (1936) nos diz que “os eventos trágicos que vivia a França perturbaram a gravidez da mãe: o bebê era muito frágil”. Cattaui menciona que o pai médico chegou a crer que o menino, tão débil, não vingaria.

Proust continuará frágil por toda a vida. Aos 10 anos de idade, uma crise de asma martirizou-o de tal forma que novamente seu pai pensou que ele não sobreviveria. A doença não o abandonará e, de certa forma, moldará a sua vida. O famoso isolamento de Proust na maturidade não se deve a qualquer misantropia, mas ao aproveitamento “prático” de sua doença, em especial porque começara a escrever sua obra-prima e precisava de concentração. Em seu quarto forrado de cortiça para abafar os sons da rua, temia o pó, o pólen, os micróbios e, claro, os ruídos urbanos de uma “fourmillante” Paris.

Sendo, como diria o Thomas Mann de “A montanha mágica”, “um filho enfermiço da vida”, Proust, logo na infância, identificou-se com a história bíblica de Noé e do dilúvio, comparando seu quarto de menino à célebre arca salvadora, onde, como o próprio Noé, ele só da memória poderia ver a “submersa” realidade à sua volta.

Frágil e só (embora tivesse muitos amigos e, na juventude, tenha frequentado os grandes salões do tempo), rico de dinheiro (sua mãe judia era filha de um grande financista) e pobre, paupérrimo, de saúde, homossexual e mimado, filho e irmão de grandes médicos (seu pai é que era a celebridade da família!), Marcel Proust descobriu-se escritor desde cedo, no que foi estimulado por uma mãe culta e refinada. No entanto, só por volta dos 40 anos, após deixar para trás obras sem maior brilho, começa a florescer. Em 1913, após a recusa de várias editoras, publica pela Grasset o primeiro volume de “Em busca do tempo perdido”, “No caminho de Swann”. Um livro “estranho”, “prolixo” e logo ofuscado pela então chamada “Grande Guerra” (1914–1918).

Após uma pálida estreia com um livro de contos e com uma não menos pálida recepção a “Swann”, Proust continuou escrevendo com exuberância. Findo o conflito mundial, lança, pela Nouvelle Revue Française (hoje Gallimard), o segundo volume da imensa obra que estava empreendendo: “À sombra das moças em flor”. Sedento de reconhecimento, inscreve-se, em 1919, no mais célebre dos prêmios literários franceses: o “Goncourt”, dedicado anualmente a eleger o melhor romance.

Por seis votos a quatro dos “Dez”, como às vezes são chamados os membros da Academia Goncourt, Proust conquista seu passaporte para a fama. Mas uma iminente tormenta estava a caminho: formara-se um escândalo. Uma das várias razões da polêmica era que Proust tinha então 47 anos, e o prêmio instituído pelos Irmãos Goncourt requeria que fosse concedido a um “jovem talento”. Outra razão: houve uma “mão de Deus”: a do amigo do autor, membro do júri, o romancista e político conservador Leão Daudet (1867–1942), que teria influenciado o julgamento a favor do desconhecido Marcel (o conhecido era o romancista e dramaturgo Marcel Prévost! (1862–1941)). Mais uma razão ainda: um livro sobre a recente “Grande Guerra” constava como o favorito, e era sobre o sofrido e histórico conflito que a sociedade desejava ler e discutir. Esse livro, que mereceu os quatro outros votos do júri, era o romance “Les croix de bois” (“As cruzes de madeira”), de um autor jovem e promissor: Roland Dorgelès (1885–1973).

Uma vez laureado, Proust foi massacrado pela imprensa de esquerda e de direita: epigramas, artigos sarcásticos, duros protestos e ironias ferozes zombavam de sua exótica e marginal figura. Zoado e ridicularizado, avançava rumo à glória. A história de tal celeuma literária está muito bem contada e analisada no livro “Proust, prix Goncourt: une émeute littéraire” (“Proust, Prêmio Goncourt: uma insurreição literária”), do ensaísta e romancista francês Thierry Laget (1959).

Olhando retrospectivamente, o Prêmio Goncourt acertara em cheio. Mas a forma extensa, singular e complexa de “Em busca do tempo perdido”, de par com o fato de que só seria publicado aos poucos, fatiado, ao longo de vários anos, contribuiu para uma incompreensão generalizada. Nem mesmo o público culto da época, salvo raras exceções, estava preparado para o livro, isto é, um cosmos ficcional (de um milhão de palavras, para arredondar) enciclopédico, polifônico, poético e “moral”, reunindo vários gêneros e por vezes se expressando em longas frases e maciços parágrafos, não deixava (e não deixa) de ser um imenso desafio para leitores, críticos e editores. Segundo o já citado Tadié, “A longa frase analítica ou lírica com que mais frequentemente se identifica sua escrita representa apenas um terço do conjunto”. Ah, bom!… Enfim, como disse Anatole France (1844–1924), “A vida é curta, e Proust é muito longo”, o que jamais o impediu de ter fervorosos leitores, pois Proust recompensa e transforma a sensibilidade de quem o lê por inteiro e com vagar.

O escritor, no entanto, não veria “de vivant” a completa publicação de todos os sete volumes de “Em busca do tempo perdido”, o que só se daria em 1927. Mas, em seus últimos anos (faleceria em 1922), tornara-se uma celebridade, começava a ser traduzido. Desde então, inúmeros críticos e autores de todos os matizes políticos e de todas as grandezas se debruçariam sobre a obra. Ressalte-se, por curioso, que muitos inicialmente a tomaram por simples memórias! No Brasil, um livro do crítico pernambucano Álvaro Lins (1912–1970), “A técnica do romance em Marcel Proust”, poria um ponto-final nessa visão. A propósito, registre-se que a recepção e a difusão da obra proustiana em nosso país foram bem estudadas em “Proust sous les tropiques” (ainda sem tradução no Brasil), um vigoroso ensaio lançado, na França, em 2021,  pelo historiador suíço-brasileiro Étienne Sauthier. Sobre esse livro, fizemos, anos atrás, a resenha “Brasil, casa de Proust”, publicada nesta “Será?”. Finalmente, é dispensável dizer que muito além do “Hexágono”, Proust conquistou e inspirou leitores e devotos em todo o mundo, aí incluídos alguns países do Oriente.

No centenário de nascimento do autor, em 1971, a cidadezinha de Illiers, com cerca de 3.400 habitantes, próxima a Paris, onde o menino Marcel costumava passar as férias, passou a se chamar Illiers-Combray em alusão à sua recriação romanesca realizada por Proust. A homenagem não poderia ser mais apropriada e pública, com a ficção, por assim dizer, docemente banhando a realidade geográfica.