Proust

Em seu romance “O amor nos tempos do cólera”, Gabriel García Márquez nos diz, pela voz do narrador, que um dos principais personagens da obra, o médico Juvenal Urbino, fora “aluno do epidemiólogo mais destacado do seu tempo e criador dos cordões sanitários, o professor Adrien Proust, pai do grande romancista”. Sim, àquela altura (nas três décadas finais do século XIX), o Proust famoso era o pai do autor de “Em busca do tempo perdido”, o higienista que lançou as sementes para uma então futura Organização Mundial da Saúde. Mais adiante, seu segundo filho, Robert, tornar-se-ia não só outro respeitado e criativo médico como também editor e organizador dos três últimos volumes do colossal romance do irmão, Marcel, que falecera em 1922.

Sabe-se que, bem antes de escrever sua obra-prima, Proust sonhou em fazer um livro sobre médicos. Enfermiço e observador do ambiente doméstico, Proust, em tese, saberia do que tratar. Nunca escreveu tal livro, mas, em compensação, “Em busca do tempo perdido” é não só um livro cheio de metáforas alusivas à medicina como repleto de vários e famosos médicos, a exemplo de Du Bulbon, Potain, Dieulafoy. Sobre o caricato  e ficcional Cottard (“imbecil, mas grande clínico”), alguns especialistas dizem que nele o escritor teria pintado o próprio pai, o que provavelmente só em parte é verdadeiro. A medicina, ainda que de uma forma agônica, desde sempre esteve em sua vida e sua mira. Mira tão ácida quanto compreensiva, como se pode deduzir deste trecho tantas vezes citado: “[…] acreditar na medicina seria a suprema loucura se não acreditar nela não fosse loucura ainda maior”. 

Bem sei que o tema “Proust e a medicina” se tornou um lugar-comum da fortuna crítica do autor. Mas talvez seja pertinente ainda lembrar que Marcel é próximo, como um dos precursores (!), de outro grande médico: Sigmund Freud. É o que muitos perceberam, a exemplo de especialistas como Jean-Yves Tadié e François-Bernard Michel (para este, renomado médico e acadêmico francês, Proust detém e evidencia em sua obra-prima um inequívoco domínio da medicina, como lemos em seu “Le Professeur Marcel Proust”, sem tradução no Brasil).

É, portanto, de se imaginar que a palavra “anamnese” desde cedo entrou na vida do pequeno Proust, mostrando-lhe a memória (“mnese”) como um vasto campo de interesse, especialmente quando ela não é conscientemente buscada, mas como que vinda, numa epifania, das profundezas do inconsciente. Para os médicos, como se sabe, a anamnese é a porta de entrada de sua relação com os pacientes. Eles precisam interpretar não só os sinais do presente, mas também os do passado, numa diligência contextualizada. Aqui, suponho útil e apropriado lembrar a reflexão deleuziana de que “Todo sintoma é uma palavra, mas, antes de tudo, todas as palavras são sintomas”…

O “Dicionário Houaiss” consigna (concisa e mediocremente, diga-se) que, em sua acepção médica, “anamnese” é “o histórico que vai desde os sintomas iniciais até o momento da observação clínica, realizado com base nas lembranças do paciente”. A anamnese é o primeiro cerco semântico ao mal do paciente. Ela tem um sabor detetivesco e, “cum granum salis”, até romanesco. Eis decerto o que fascinava Proust, não só o jovem Marcel do ambiente familiar, mas o escritor que foi, ao lado de Shakespeare, o maior e mais profundo analista do ciúme, como nos assegura Harold Bloom. 

Embora dirigida “para trás”, como indica a sua etimologia grega, a anamnese, ao trazer conteúdos de volta à memória consciente, é um recurso que foca no presente e no futuro (respectivamente, para os médicos, o diagnóstico e o prognóstico), e assim, por clara analogia, estamos em pleno processo romanesco e existencial do escritor. “Em busca do tempo perdido” é tão voltado ao futuro e ao presente quanto sustentado pelo passado (aliás, um passado sempre acossado pela certeza de que “uma lembrança, um pesar são coisas móveis”, como se lê em “A prisioneira” e ao longo de todo o romance). A propósito, de uma forma mais radical e não menos certeira, Gilles Deleuze, em seu lúcido ensaio “Proust e os signos”, diz-nos que “A obra de Proust não é voltada para o passado e as descobertas da memória, mas para o futuro e os progressos do aprendizado”, o que, note-se, subtrai-lhe .a fisionomia passadista com que muitos equivocadamente a encaram e não diminui sua estatura como sendo, ela mesma, a obra, uma longa e profunda anamnese. 

Foi de uma mensagem a mim gentilmente enviada pelo historiador Frederico Pernambucano de Mello, autor do clássico “Guerreiros do sol”, meu confrade na Academia Pernambucana de Letras, a quem aqui publicamente agradeço, que me vieram as breves reflexões deste artigo. Em sua mensagem, Pernambucano nos conta um curioso episódio: “Ao tempo em que reformava o Hospital de Alienados da Tamarineira [bairro no Recife], na primeira metade dos anos 1920, fechando calabouços e extinguindo a famigerada camisa de força, o psiquiatra e professor Ulysses Pernambucano de Mello [avô do historiador] foi abordado certo dia por um jovem médico que cumpria residência ali, que lhe perguntou qual a maneira de desenvolver uma boa anamnese. Havia toda uma bibliografia a respeito, autores franceses e alemães disponíveis, qual destes recomendava. Sem pestanejar, o professor volta-se para o aluno e dispara: ‘Leia Proust’”.

Se esse conselho duplamente magistral de Ulysses Pernambucano, pioneiro da moderna psiquiatria brasileira, fosse seguido, teríamos um belo efeito prático: melhores médicos.