
OS CEOs das Big Thech
A pedido do amigo David Hulak, que cobrou minha promessa
Marx, em discurso de 1856, ao definir as mudanças advindas do novo sistema, o Capitalismo, afirmava:
“Em nossos dias, tudo parece repleto de seu contrário: o maquinário dotado do maravilhoso poder de diminuir e frutificar o trabalho humano, contemplamos esfomeados e estafados; as fontes modernas de riqueza, por algum estranho feitiço, são transformadas em fontes de necessidade; as vitórias da arte parecem compradas pela perda de caráter.”
No tecnofeudalismo isso se potencializa: um mundo em que há uma classe dominadora das nuvens, muito pequena, que obtém sua renda — mais que extraordinária — advinda dos feudos digitais. Estes precisam ser arrendados pelos capitalistas que, para vender suas mercadorias, são forçados a utilizá-los.
Nesse mundo, os feudos são plataformas de comércio cujos algoritmos são propriedade de quem deles se apropria, submetendo todos nós à sua lógica.
Os capitalistas comuns submetem os servos do sistema. Somos dependentes e retroalimentamos os algoritmos. Nós, servos, constantemente geramos dados e informações que alimentam e direcionam o sistema, fazendo com que se aperfeiçoem os modelos de expropriação e a renda das nuvens se avolume.
Como diz Yanis Varoufakis: “Sob o tecnofeudalismo, já não temos propriedade sobre nossas mentes. Cada proletário está se tornando um proletário das nuvens durante o horário comercial e um servo no resto do tempo. Cada trabalhador autônomo empreendedor vira um vassalo das nuvens, e cada trabalhador autônomo precarizado se torna um servo das nuvens.”
A internet nos tornou servos, no sentido de que sua dependência faz com que estejamos o tempo todo fornecendo informações, ou seja, trabalhando para aqueles que se apropriam delas. As nuvens têm donos poderosos, que sabem tirar proveito de tudo que entregamos a cada instante.
Nesse mundo confuso, nós, que vivemos no Hemisfério Sul e não temos o controle da tecnologia nem da financeirização baseada no padrão dólar, passamos por dificuldades adicionais.
O mundo está sendo direcionado pelo padrão dólar, ainda não pelo iuane. Pouco a pouco, para garantir nossa inserção — mesmo que como países periféricos — e assegurar um mínimo de padrão de vida às nossas populações, somos forçados a aderir a um dos dois megablocos que vão se consolidando: a esfera de influência estadunidense ou a esfera de influência chinesa.
O domínio do capital-nuvem está nessas mãos; é quase impossível fugir dessa escolha sempre problemática. O espaço para se ter uma posição independente inexiste, e a formação de um bloco alternativo se torna ficção. O papel de ponte entre os dois blocos vai se fechando.
O padrão dólar, alicerçado pelas políticas anticíclicas dos bancos centrais dos países mais desenvolvidos, levou a um derrame de moeda que assegura o crescimento exponencial da capacidade financeira do capital-nuvem e o torna insubstituível.
Mesmo a China, que poderia ter interesse na substituição do padrão monetário para permitir espaços menos draconianos no comércio internacional, tem reservas imensas nessa moeda. Sua desvalorização não é, portanto, um interesse prioritário nas novas alianças que vem construindo. O uso das nuvens, com novas ferramentas na área financeira, para um reposicionamento na geopolítica internacional, é decisivo.
Com o derrame de moeda dos bancos centrais para resolver crises e o crescimento do capital-nuvem, a própria dinâmica das inovações passa a ser influenciada.
Energia renovável, veículos autônomos, educação a distância, nova bioeconomia e todos os outros segmentos da nova matriz tecnológica que se delineia passam pelo capital-nuvem, que se expande de maneira exponencial.
A química, a física e a biologia modernas não se assentam mais em experimentos terrenos, palpáveis, mas no capital-nuvem. Com isso, o domínio dos caminhos que se apresentarão na ciência passa necessariamente pelos interesses desses capitais — um mundo orientado pelas grandes corporações de tecnologia, as chamadas Big Techs.
As ações hipervalorizadas dos capitalistas da nuvem fazem com que dominem também o capital financeiro. A riqueza de Bezos e Musk, por exemplo, passou de 10 bilhões de dólares em 2010 para 200 bilhões cada em 2021.
A inteligência artificial, os data centers sofisticadíssimos, as startups revolucionárias — todos são adquiridos e comandados pelo novo capital. Os empréstimos baratos, conseguidos nas crises, não foram direcionados para o aumento do capital produtivo propriamente dito, em grande parte, mas sim para o crescimento astronômico do capital financeiro dos proprietários do capital-nuvem.
As crises, com as saídas engendradas pelos bancos centrais, sempre acompanhadas de crescimento exponencial do crédito subsidiado, fizeram com que a lógica do novo mundo fosse comandada por esse capital restrito e exclusivo, levando a grande maioria das firmas e da população a não só trabalhar para eles, mas também a se submeter às suas regras, tornando-se reféns de suas vontades.
Novos ativos digitais como Bitcoins, derivativos e NFTs vão criando espaços que podem consolidar o novo feudalismo, mesmo sem o Estado como regulador.
Isso é assustador. Estaremos chegando ao mundo dos impérios empresariais?
Ser servo em um Estado que tem regras mínimas é uma coisa; ser servo num mundo em que as regras são definidas pelas rendas das grandes empresas é um inimaginável pesadelo.
* Yanis Varoufakis é economista e político grego, professor universitário e ex-ministro das Finanças da Grécia (2015). Reconhecido por suas críticas à austeridade e ao sistema financeiro global, tornou-se referência no debate internacional sobre capitalismo, democracia e tecnologia. É autor de diversos livros, entre eles “O Minotauro Global” (2011) e “Technofeudalism: What Killed Capitalism” (2023), obra em que desenvolve o conceito de tecnofeudalismo.
Yanis Varoufakis foi um meteórico Ministro da Fazenda da Grécia (de janeiro a julho de 2015). Foi “renunciado” pelo Primeiro Ministro Alexis Tsipras durante a renegociação da dívida grega com a União Europeia, e saiu com a marca de aventureiro e irresponsável. Depois disso não teve mais cargo executivo e tratou de se reinventar como líder da uma ultra-esquerda europeia. Usar o conceito de feudalismo para analisar o fenômeno das “big techs” que aparece 5 ou 6 séculos depois é forçação e a maneira pela qual Varoufakis descreve as “big Techs” como “feudais” é delirante. Só serve mesmo para boicotar os esforços para regulamentar a atuação desses gigantes. Tratei da crise financeira da Grécia, Varoufakis inclusive, em Helga Hoffmann, “Grécia: a festa, a ressaca e as torcidas”, Política Externa, vol.24 no. 1 e 2, jul/dez 2015.
Também penso assim, Helga. Falar em feudalismo a respeito das big techs me parece “especioso”.