
Jantar
Quando Air Force One pousou na pista do Aeroporto de Stansed, um dos seis aeroportos de Londres, já provocou alguma surpresa: era o velho avião do POTUS (President Of The United States). Parece que alguns haviam esperado que fosse o luxuoso avião presidencial Boeng 747-8 que Donald Trump ganhou de presente da família real do Catar. Mas o Departamento de Defesa ainda não terminou de adaptar o avião de US$ 400 milhões com os sistemas de comunicação e segurança necessários para uso presidencial. E a diplomacia deve estar se perguntando como usar o presente do Emir Al-Thani depois que o Catar virou mais um alvo de bombardeios ordenados por Netanyahu.
Não houve tapete vermelho em Stansed, diferente do que Trump estendeu a Putin no Alasca, que a pompa ficou restrita aos domínios do Rei Charles III, alegadamente por motivos de segurança. Ao sair do avião o casal presidencial foi recebido pela Ministra das Relações Exteriores britânica Yvette Cooper e alguns oficiais, além das TVs. Fotografada na escada, a Primeira-Dama Melania Trump deveria agradar os súditos do rei cuja presença não foi permitida no aeroporto, vinha de capa bege com ares de Burberry, mas suas escolhas de traje para o resto da visita desapontaram os críticos da moda, do chapéu roxo com terno de gabardine preto reclamou-se que a aba chegava quase ao queixo, e do longo amarelo para o jantar com os reis se ironizou o cinto lilás, que em algumas fotos e ao longe sugeria nudez na cintura.
Não havia um Embaixador do Reino Unido nos Estados Unidos presente, pois o embaixador britânico, Peter Mandelson, havia sido exonerado cinco dias antes por revelações sobre suas relações com Jeffrey Epstein. Na véspera da chegada de Trump oposicionistas haviam projetado nas torres da fortaleza de Windsor gigantescas imagens de Trump e Epstein juntos em festa, e o temor de que o assunto pudesse obstruir a cooperação pretendida pairou sobre toda a visita. Aliás, boas-vindas a Trump só existiram no interior dos muros do Castelo, nas ruas de Londres predominaram os protestos. Sobretudo membros do Partido Trabalhista não entenderam para que demitir Mandelson enquanto se preparavam homenagens ao outro amigo festeiro de Epstein. O Primeiro-Ministro britânico havia explicado aos jornalistas que a desonra do Barão Mandelson é que este chegara a questionar a culpabilização do acusado depredador sexual.
Paradoxalmente, foi o momento errado da demissão de Mandelson que fez o “caso Epstein” emergir nos protestos londrinos. E a tecnologia de projetar imagens. Mas as manifestações “Trump Not Welcome” foram uma mistura heterogênea, inclusive oposição ao Primeiro-Ministro Keir Starmer, cuja popularidade está em seu nível mais baixo. Viram-se cartazes contra o racismo embutido na violência aos imigrantes e contra outras tendências do “trumpismo” como o negacionismo climático, e a ameaça a direitos humanos básicos. E havia participação dos defensores da solução dos dois estados para a Palestina. Não indica que os opositores à visita do presidente americano eram todos defensores dos imigrantes, pois formou-se na Inglaterra um difuso sentimento anti-imigrantes, alimentado pela percepção errada de que são todos ilegais, de que chegam da França aos milhares em botes infláveis (o que também não é verdade), de que são todos miseráveis que sobrecarregam o NHS (mais uma mentira), e de que o país que um dia dominou os mares hoje perdeu o controle de suas fronteiras (mais uma paranoia anti-Starmer).
De qualquer modo, de Trump se ocultaram as ruas, não queriam que ficasse de mau humor. Um helicóptero o levou do aeroporto à casa do Embaixador dos Estados Unidos em Londres, onde pernoitou, e no dia seguinte até o castelo. Dentro dos muros de Windsor foram só elogios mútuos, que em cerimonial a monarquia britânica continua inigualável. Verdade que nem tudo foi no rigor da tradição. Trump, com Melania, foi levado em passeio de carruagem com o rei Charles e Camila, antes de inspecionar a guarda. Tudo dentro dos muros do Palácio de Windsor. Noutra era, o passeio na carruagem dourada teria servido para mostrar os senhores aos súditos, e para que o povo na rua visse o rei e seu magnífico hóspede.
O ponto alto da visita foi o banquete solene para quase 200 pessoas da elite de governo e empresarial de ambos os países. Trump de colete branco e gravata branca tinha ar presidencial. Não tenho avaliação do efeito do seu discurso de gala, que teve até citação de Shakespeare, Dickens e Orwell, e do qual escolho algumas pérolas – digo, hipérboles (“Donald Trump soaks up the glory of his second state visit” “Donald Trump absorve a glória de sua segunda visita de Estado”, Financial Times, 17/09/2025): “O laço de parentesco e identidade entre a América e o Reino Unido não tem preço e é eterno. É insubstituível e inquebrantável. Nós fizemos mais bem à humanidade que quaisquer dois países em toda a história em conjunto.” (Não é a minha tradução que é confusa: “We’ve done more good for humanity than any two countries in all history together.”)
Todos os observadores notaram que Trump ficou muito feliz com a gloriosa viagem, em particular daquela parte com a família real. Logo que voltou para Washington, Trump enviou uma recomendação ao Primeiro Ministro Starmer: que usasse o exército para lidar com os imigrantes. Na semana seguinte, o Reino Unido reconheceu a Palestina na ONU, mas isso já havia sido mencionado na conferência de imprensa conjunta de Keir Starmer e Donald Trump em Londres 18 de setembro como “uma das poucas divergências” entre os dois.
É difícil medir exatamente o que o Reino Unido ganhou da decisão de cortejar o Presidente dos Estados Unidos. Fora da União Europeia, “Brexit” completado em janeiro de 2020, com o poder em declínio, toda a pompa e circunstância reforçaram a evidência de que o Reino Unido é o parceiro mais fraco da “relação especial” tão exaltada no encontro. Na negociação comercial de maio havia obtido tarifa de 10%, inferior aos 15% impostos à União Europeia. E conseguira uma cota especial de exportação de carros para os EUA, além da promessa de que os 25% sobre exportações de aço do Reino Unido seriam eliminados.
Segundo editorial do Financial Times o resultado líquido das honras monárquicas a Trump foi pequeno. (The FT View, “Britain plays host do King Donald: In terms of Trump-style transacionalism, Starmer’s fawning secured few net gains”, FT 19/09/2025) O anunciado compromisso de investimentos de 150 bilhões de libras de empresas americanas na verdade agrega aplicações que já estavam planejadas. Há uma promessa de investimento em centros de dados e infraestrutura para IA, em montante pouco significativo comparado às somas que as gigantes da tecnologia dos EUA estão gastando ao redor do mundo. A tarifa sobre o aço por ora permanece.
No campo da geopolítica, nem Starmer nem outros líderes europeus, em conjunto ou cada um por si, conseguiram influenciar de maneira relevante a posição de Trump em relação ao Kremlin. Trump agora está pedindo que a Europa aplique mais sanções a Moscou antes de Washington poder fazer o mesmo. Ainda não se sabe quais serão os próximos passos nem a participação dos envolvidos depois que Trump, em encontro com Zelenski à margem da reunião da ONU, de surpresa informou que “a Ucrânia poderá retomar todo o seu território”. Isso significa o quê, concretamente? Quanto à catástrofe em Gaza, não há sinal de diluição do apoio de Trump ao Primeiro-Ministro Netanyahu ou de que a tragédia do conflito Israel-Palestina tenha particular atenção da diplomacia presidencial de Washington. No mundo uma breve sensação de alívio: pelo menos em Londres o “rei Donald” se comportou de modo educado, o líder do mundo livre conseguiu ficar três dias sem usar insultos e linguagem chula.
24/09/2025
Muito bom o artigo. Mostra como a Inglaterra fez uma pequena limonada, com o Limão.
Obrigada, mas este caso está a merecer uma análise de custo–beneficio. O que rendeu todo o custo de manter a monarquia e da festinha para Trump se imaginar “rei Donald” ?
Boa pergunta.