Helga Hoffmann

Faz um ano, Juan Guaidó, então eleito Presidente da Assembleia Nacional, se autoproclamou “Presidente encargado” da Venezuela, rejeitando a reeleição de 2018 de Nicolás Maduro como fraudulenta. A esperança e o otimismo dos primeiros meses de 2019 se esvaíram gradualmente, cada vez que a estratégia da oposição não funcionou e Nicolás Maduro não cedeu nem foi deposto.[1] Além de protestos de intensidade variada, dentro e fora do país, houve durante o ano negociações entre governo e oposição, desta vez patrocinadas pela Noruega, mas de novo fracassaram. Maduro negou que tivesse concordado com novas eleições presidenciais durante essas negociações. A oposição já não se apresenta tão unida quanto nos primeiros meses e sua capacidade de mobilização popular voltou a ser questionada depois que as manifestações de 16 de novembro, convocadas por Guaidó, foram menores que as anteriores e tiveram a contrapartida de manifestações chavistas convocadas por Maduro no mesmo dia. Tiveram mais repercussão as manifestações fora de Caracas, no interior, e convocações de representantes de Guaidó no exterior para que os exilados venezuelanos se manifestassem.[2]

Enquanto isso Maduro, sobrevivente, parece manter o controle no país e se declara disposto a negociações diretas com os Estados Unidos. (Entrevista comentada no Washington Post, 21/01/2020, “Venezuela’s embattled leader speaks to The Post”). O Departamento de Estado não reagiu. Mas John Bolton, demitido ano passado do seu cargo de assessor de segurança nacional, tuitou imediatamente: “A única negociação que devemos ter com Maduro é sobre o que ele quer de almoço no voo para exílio permanente em Cuba ou na Rússia.” Tuite que, como ele deveria saber, ajuda a propaganda chavista que pinta Guaidó como lacaio dos americanos.

Até quando vão continuar o embate e o impasse? Como previsões anteriores de uma derrocada da ditadura não se concretizaram, muitos analistas concluíram que não dá para desfazer esse nó antes de entender melhor como foi feito e porque não se desfaz.[3] Já foi aventada a hipótese inspirada na lenda em que o nó górdio foi cortado a espada. Mas são bem poucos os que acreditam que uma intervenção militar pode melhorar a situação. Ninguém conseguiu mostrar de que modo a entrada de tropas estrangeiras na Venezuela poderia ter algum resultado que não fosse catastrófico. As recentes intervenções militares dos Estados Unidos, que acabam de transformar o Iraque de aliado em território ocupado, servem para desmontar a ideia do uso da força, que só poderia tornar uma situação muito ruim ainda pior.[4] E as sanções também têm efeito contraditório, pois ao menos uma parte da população venezuelana acredita quando o governo atribui a miséria e a escassez às sanções econômicas e financeiras dos Estados Unidos. Maduro até organizou um abaixo assinado de 2 milhões contra as sanções.

Maduro não foi à ONU para a abertura da Assembleia Geral em setembro, mas na ONU persiste a preocupação com a Venezuela. De Caracas, Maduro informou que apresentaria ao Conselho de Segurança da ONU provas de que o governo da Colômbia estaria apoiando ataques terroristas a alvos militares da Venezuela. Até a instalação de um sistema antimísseis na Venezuela foi mencionada.

Não sabemos se os partidários de Guaidó fizeram demandas concretas à ONU naquele momento, se pediram apoio às negociações de paz na Colômbia ou ajuda internacional para os vizinhos que mais suportam a pesada a carga de milhões de refugiados venezuelanos. Fato é que o Conselho de Direitos Humanos da ONU, no mesmo dia em que terminava a reunião de chefes de estado na Assembleia Geral da ONU, adotou a resolução 42/25, que estabeleceu uma missão de averiguação de fatos na Venezuela. O mandato dessa missão, para a qual foram designados três juristas europeus de renome, deveria “investigar execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias, tortura e outros tratamentos desumanos ou degradantes desde 2014”; “garantir punição para os perpetradores e justiça para as vítimas”; “apresentar ao Conselho um relatório do que observasse”.

A resolução 42/25 de 27 de setembro de 2019 é longa e muito detalhada: “expressa grave preocupação com a situação alarmante dos direitos humanos na República Bolivariana da Venezuela, que inclui padrões de violações diretas e indiretas afetando todos os direitos humanos – civis, políticos, econômicos, sociais e culturais – no contexto da continuada crise política, econômica, social e humanitária, como se mostra nos relatórios do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos e outras organizações internacionais”. O voto registrado, de 19 países a favor e 7 contra, com 21 abstenções, só pode ser considerado um triste retrato da democracia no mundo.[5]

O relatório do Alto Comissário ali referido é um depoimento oral que Michelle Bachelet havia feito ao Conselho uma semana antes, em 20 de setembro.

Depois de resolução tão contundente, é claro que houve surpresa três semanas depois, quando a ONU se reuniu em Genebra em 17 de outubro e elegeu a Venezuela para o Conselho de Direitos Humanos da ONU. O Conselho é um órgão intergovernamental de 47 países cujos membros são eleitos pela maioria da Assembleia Geral em voto secreto. Cada país-membro se compromete a defender e promover direitos humanos ao redor do mundo. Havia dois assentos em aberto dos oito assentos para representar a América Latina e o Caribe, e foram eleitos dois novos membros, Brasil e Venezuela, respectivamente com 153 e 105 votos.[6] Maduro comemorou, organizações de direitos humanos, como a Human Rights Watch, reagiram indignadas.

Apenas dois meses depois, em 18 de dezembro de 2019, o Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos Michelle Bachelet relataria oficialmente ao Conselho os números do que encontrou de abuso e violência, prisioneiros políticos, assassinatos de manifestantes e de indígenas, intimidação e prisão de jornalistas e mídia online, privação severa de meios de sobrevivência.  Seu apelo final era por negociação, e de parte do Alto Comissariado esta se daria nos termos de uma Carta Compromisso com o Ministério das Relações Exteriores da Venezuela para a presença de dois funcionários do Comissariado por um ano, com acesso a todo o país, inclusive centros de detenção, e um programa conjunto com instituições governamentais da Venezuela, para a investigação de violações.[7]

Veremos ao longo do ano se as tratativas de Michelle Bachelet atenuarão os abusos. Para o Brasil, além do problema da acolhida aos refugiados, inclusive centenas de crianças que cruzam a fronteira desacompanhadas, é preocupante a notícia de que cinco militares da Venezuela entraram com pedidos de asilo. Felizmente foi descartada pelos militares brasileiros o uso de medidas de força.

Juan Guaidó conseguiu até agora evitar a prisão da qual outros líderes oposicionistas como Leopoldo Lopez não escaparam. Mas a nova ofensiva do governo foi a de impedir à força sua reeleição para Presidente da Assembleia Nacional.

Em 5 de janeiro correu mundo a imagem do jovem Guaidó lá no alto das grades com seu paletó azul tentando pular o portão da Assembleia Nacional e impedido por dezenas de policiais. A imagem pode dar novo ânimo a seus seguidores. Guaidó e deputados oposicionistas tiveram a imunidade retirada e foram impedidos de entrar na Assembleia, enquanto lá dentro o deputado chavista Luís Parra, entre gritos e discussões, falando com um megafone, se declarava o novo Presidente da Assembleia Nacional. Apenas três semanas antes o relatório Bachelet de 18 de dezembro havia expressado preocupação com a suspensão da imunidade parlamentar de 30 deputados oposicionistas. Foi simplesmente ignorado seu apelo para que fossem criadas “as condições necessárias para eleições livres, imparciais, críveis, transparentes e pacíficas” (sic). Elliot Abrams, o enviado especial do Departamento de Estado para a Venezuela, já em dezembro havia avisado que o regime de Maduro estava usando uma combinação de ameaças, prisões e propinas para impedir a reeleição de Guaidó.

Se Guaidó já não é reconhecido pelo governo como Presidente da Assembleia, como será recebido em seu retorno a Caracas?  Guaidó, apoiado pelos deputados oposicionistas, se declarou Presidente interino da Assembleia Nacional enquanto não ocorrerem novas eleições. Então a Venezuela passou a ser uma dupla novidade a intrigar a ordem jurídica mundial: tem dois Presidentes da República e dois presidentes da Assembleia Nacional. Enquanto Maduro era entrevistado pelo Post, Guaidó desafiou a proibição de sair do país e chegou a Bogotá meio clandestino, para se encontrar com o Secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo, que ali estava para uma reunião de cúpula contra o terrorismo. Depois disso foi a Davos, onde discursou (em espanhol) em 23 de janeiro, em sessão especialmente organizada de momento, no exato dia em que completava um ano como “Presidente encargado”.

O que Juan Guaidó pediu no Fórum Econômico Mundial? Essencialmente, o que pediu às lideranças do mundo econômico e financeiro, em particular aos europeus, é que reforcem as sanções. Não sei quantos terão percebido sua admissão de que as sanções foram “probablemente controvertidas”. Mas insistiu que são as únicas ferramentas com as quais conta para desestabilizar o regime e deter a ditadura. Pediu que seja detido o comércio ilegal de ouro, “ouro manchado de sangue”, produto de uma mineração que está poluindo rios, destruindo comunidades indígenas e financiando grupos ilegais na Colômbia. Pediu apoio dos europeus aos acordos de paz na Colômbia. Falou do “desastre” em que vive seu país. Na entrevista a Michael Stort, editor para a América Latina no Financial Times, além do apelo ao reforço das sanções, lembrou os refugiados: “A crise humanitária na Venezuela é comparável à do Sul do Sudão, Iêmen e Síria. Todos estes países estão em guerra. Não vemos as bombas, mas sentimos a dor.” (Financial Times, 22/01/2020) E no entanto os fundos que se destinaram à crise de refugiados da Venezuela talvez não cheguem a um décimo das doações da comunidade internacional para refugiados da Síria. A crise de refugiados da Venezuela ainda é tratada como problema regional.[8]

Teremos que acompanhar como irão repercutir as sanções na política interna da Venezuela e quanto os seus aliados que mais ajudam, China, Rússia, Cuba e Turquia, poderão compensar o arrocho. Junto com as novas receitas não petroleiras que proporcionam o ouro, o tráfico de drogas e as remessas dos venezuelanos no exterior. O que é mais previsível é o aumento do número dos refugiados, que já passa de 4,5 milhões, pode estar chegando a 5 milhões. Se estão certas as projeções da Divisão de População da ONU, que dá como 28,9 a população da Venezuela em 2019, a diáspora venezuelana já equivale a mais de 15% da população que ainda não saiu. Possivelmente a falta de oportunidades, a fome e a miséria contam mais que tudo na despedida, e de qualquer modo o orgulho nacional dos venezuelanos sobrevive. O que os vizinhos no Continente e a comunidade internacional podem e devem organizar de concreto é a acolhida aos refugiados.

 

[1] Ver aqui na “Será?” “Venezuela: militares ofendidos rechaçam a ajuda”, 22/02/2019.

[2] No Brasil deu-se a confusa invasão da Embaixada da Venezuela em Brasília.

[3] Por exemplo, a revista Foreign Affairs, do Council on Foreign Relations em Nova York, organizou na sua série de antologias uma coleção digital especial The Collapse of Venezuela.

[4] www.foreignaffairs.com/print/1125559

[5] https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/FFMV/Pages/Index.aspx

[6] A distribuição geográfica do Conselho é de 13 assentos para África, 13 para Ásia e o Pacífico, 8 para América Latina e Caribe, 7 para Europa Ocidental e outros estados, e 6 para Europa Oriental. Cada país tem mandato de 3 anos, e não pode ser reeleito imediatamente depois de dois mandatos consecutivos. www.ohchr.org

[7] https://reliefweb.int/report/venezuela-bolivarian-republic/venezuela-high-commissioner-bachelet-details-plans-new-human

[8] Cynthia J. Arnson (Diretora do Programa Latinoamericano do Woodrow Wilson Center), The Venezuelan Refugee Crisis is Not Just a Regional Problem: Latin American neighbors are pulling more than their weight. Foreign Affairs, 26/07/2019 www.foreignaffairs.com/print/1124509