Ivanildo Sampaio

Navio Santa Maria, tomado de assalto pelo DRIL.

Neste  último  dia 02 de fevereiro, completaram-se exatos 59 anos que o navio Santa Maria, de bandeira portuguesa,  com  650 passageiros e 350 tripulantes, tomado em alto mar por  revolucionários que lutavam contra as ditaduras de Francisco Franco, na Espanha,  e  Antonio Salazar,  em Portugal, atracava no Porto do Recife, depois de vários dias em alto-mar, à procura de um porto seguro. Eram 25 revoltosos, 20 deles espanhóis e portugueses.   Um deles, o “capitão” Eunício Campelo, era pernambucano, mas  aderiu ao movimento apenas 24 horas antes do atracamento. A história do Santa Maria está nos compêndios de História. A grande aventura de Eunício Campelo, nunca se contou – porque, além dele, poucos acreditavam que havia alguma coisa pra contar

Conheci o “capitão” Eunício em meados dos anos 60 quando, ainda estudante, comecei a produzir meus primeiros textos para o Jornal do Commercio. Eunício era chefe do Arquivo – onde estavam  guardadas milhares de fotos publicadas no jornal ao longo da história, devidamente identificadas e selecionadas por ordem alfabética. Mas me soava estranho que toda a Redação, inclusive o diretor, só se referissem ao chefe do Arquivo como “O Capitão”, embora ele também acumulasse as funções de repórter “setorista” do Porto do Recife. Elegante, não usava farda, mas jamais foi visto na Redação que não fosse trajando paletó e gravata. No entanto, ficava a pergunta: Capitão como? Capitão de que? Até que um dia Eunício  esclareceu:  era “capitão” das “forças rebeldes” do DRIL –  Diretorio Revolucionário Iberico de Libertación, instituição da qual eu jamais ouvira falar, e cuja  patente, pela força de  ventos tortuosos, foi honrosamente por ele conquistada no episódio  do Santa Maria.

O levante para tomada do navio, que saiu de Lisboa com destino a Miami, começou na madrugada do dia 22 de janeiro de 1961, quando 24 integrantes do DRIL, sob o comando do capitão Henrique Galvão, dominaram a tripulação e apoderaram-se do navio.  Galvão havia conspirado contra Salazar, fora preso e expulso do Exército, mas fugiu e refugiou-se na Embaixada Argentina. Na preparação do levante, embarcou clandestinamente no Santa Maria, numa escala do navio em Curaçao. A ideia era denunciar para o mundo a tirania dos dois ditadores. Condenados em seus países, tornaram-se “apátridas”, deveriam ser presos no primeiro porto onde o navio atracasse.

Quando o presidente Jânio Quadros, que tomara posse alguns dias antes, permitiu que o Santa Maria atracasse no Recife, repórteres de várias nacionalidades se aglomeravam no Cais do Porto, à espera dos revoltosos. Eunício Campelo era um deles: com  o navio ainda fundeado, fez os primeiros contatos com Henrique Galvão. Quando o grupo pisou em terra firme, estava entre eles esse novo “revolucionário”, devidamente fardado e com a patente de “capitão”:  já não era o repórter setorista do Cais do Porto, e sim um guerrilheiro da liberdade, um combatente solitário de todas as ditaduras.  Conta-se também que quando seus chefes no jornal lhe pediram o texto com a narrativa do episódio, ele fez valer sua patente: – “Nada posso revelar. Não sou mais jornalista. Sou capitão do DRIL. Tudo que aconteceu a bordo são segredos militares”.

Jânio Quadros deu asilo político aos rebeldes, os passageiros foram transferidos para o navio Vera Cruz, que   seguiu para Lisboa,  Eunício voltou à vida de repórter do Cais do Porto. E jamais abdicou da patente de Capitão.

Quando o conheci, ele era muito menos “capitão” e muito mais  “o repórter do Cais do Porto”, relatava os navios que chegavam e que partiam,  numa época em que não havia Suape e o Porto do Recife era um dos mais importantes do País.  Algumas vezes, nas sextas-feiras,  findas as tarefas da redação, eu e outros companheiros, bem  mais jovens do que ele,   acompanhamos Eunicio  na sua tarefa de marinheiro da noite. Íamos juntos para o bairro do Recife. Lá, ele  identificava a bandeira de cada navio, conhecia cada rua estreita do velho bairro, era amigo das marafonas decadentes  que faziam companhia a marinheiros solitários, frequentava os botequins mais conhecidos do pedaço – Moulin Rouge, Chantecler, Gambrinus, Shipchandler e outros tantos, onde tinha crédito e “pendurava” a conta. Um dia, deixei o jornal, deixei o Recife e por muitos anos não voltei a ver o Capitão Eunício Campelo. Fui reencontrá-lo, muito tempo depois, já no outono de sua vida, quando  não mais relatava a chegada e a saída dos navios cargueiros que traziam grãos e levavam açúcar, e aquele mundo de fantasia,  por Eunício tanto tempo frequentado, já fora  tragado pelo tempo. No entanto, na sua dignidade humilde, o Capitão Eunício, que nunca abriu mão do paletó e da gravata, bebia, solitário, todas as noites,  seu uísque de segunda qualidade num restaurante decadente próximo do trabalho. Sempre sozinho e de pé, pois afirmava solenemente que “Capitão não senta”,  ficava ali durante horas, devidamente estabelecido e conduzindo o leme pela  estrada de sua solidão. Até que um dia, Eunicio se foi – e poucos compareceram ao seu sepultamento. Não sei se o “Capitão” pediu para ser também enterrado em pé, como faziam alguns membros das tribos ciganas mais antigas da Bessarábia. Ou como eram jogados no mar tormentoso os marinheiros rebeldes dos navios corsários de outrora. Sei apenas que na história do Santa Maria o capitão Eunício Campelo foi o herói de dois continentes.

 

Ivanildo Sampaio é jornalista